Imagem extarída do site Adital
Fonte: Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e Adital
Relatório Mundial da Unesco
Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural
Introdução
A diversidade cultural vem
suscitando um interesse notável desde o começo do novo século. Porém os
significados que se associam a esta expressão "cômoda” são tão variados
como mutáveis. Para alguns a diversidade cultural é intrinsecamente positiva,
na medida em que se refere a um intercâmbio da riqueza inerente a cada cultura
do mundo e, assim, aos vínculos que nos unem nos processos de diálogo e de
troca.
Para outros, as diferenças culturais
fazem-nos perder de vista o que temos em comum como seres humanos, constituindo
assim a raiz de numerosos conflitos. Este segundo diagnóstico parece hoje mais
crível na medida em que a globalização aumentou os pontos de interação e
fricção entre as culturas, originando tensões, fraturas e reivindicações
relativamente à identidade, particularmente a religiosa, que se convertem em
fontes potenciais de conflito. Por conseguinte, o desafio fundamental
consistiria em propor uma perspectiva coerente da diversidade cultural e,
assim, clarificar que, longe de ser ameaça, a diversidade pode ser benéfica
para a ação da comunidade internacional. É esse o objetivo essencial do
presente relatório.
Relatório mundial da Unesco
Na linha da convicção da UNESCO
sobre a necessidade e o valor intrínseco da fecunda diversidade das culturas do
mundo, inscrita na sua Constituição de 1945, os objetivos do Relatório Mundial
sobre a Diversidade Cultural são os seguintes:
- analisar a diversidade cultural
em todas as suas facetas, esforçando-se por expor a complexidade dos processos,
ao passo que identifica um fio condutor principal entre a multiplicidade de
possíveis interpretações;
- mostrar a importância da
diversidade cultural nos diferentes domínios de intervenção (línguas, educação,
comunicação e criatividade) que, à margem das suas funções intrínsecas, se
revelam essenciais para a salvaguarda e para a promoção da diversidade
cultural;
- convencer os decisores e as diferentes partes intervenientes sobre a
importância em investir na diversidade cultural como dimensão essencial do
diálogo intercultural, pois ela pode renovar a nossa percepção sobre o
desenvolvimento sustentável, garantir o exercício eficaz das liberdades e dos
direitos humanos e fortalecer a coesão social e a governança democrática.
Deste modo, o Relatório Mundial
propõe-se a fazer uma resenha das novas perspectivas abertas pela análise dos
desafios da diversidade cultural e, ao fazê-lo, traçar novas modalidades para
acompanhar e orientar as transformações em curso. Por conseguinte, o Relatório
Mundial não pretende fornecer soluções pré-determinadas às questões com as
quais se podem confrontar os decisores. O seu objetivo consiste, antes, em
sublinhar a complexidade desses problemas, que não podem solucionar-se simplesmente
pela vontade política, mas que na generalidade exigem uma melhor compreensão
dos fenômenos subjacentes e maior cooperação internacional, em particular
mediante o intercâmbio de boas práticas e a adoção de diretrizes comuns.
O Relatório não pretende fazer o
inventário universal da diversidade cultural, estabelecido na base de
indicadores disponíveis, como faz com o Relatório Global de Monitoramento de
Educação para Todos, que a UNESCO publica. Ainda que este Relatório Mundial
inclua um anexo estatístico com 19 quadros referentes a diversos âmbitos da
cultura e um capítulo dedicado a considerações metodológicas, elaborado em
estreita colaboração com o Instituto de Estatística da UNESCO em Montreal, a
formulação de indicadores na esfera da diversidade cultural encontra-se apenas
no seu início. Para realizar um inventário dessa natureza seria necessário
levar a cabo, com o acordo dos EstadosMembros da UNESCO, uma verdadeira
investigação mundial sobre a diversidade cultural, tarefa que necessitaria de
recursos muito mais amplos que os consignados a este Relatório, embora pudesse
no futuro vir a ser realizado pelo Observatório Mundial sobre a Diversidade
Cultural, cuja criação é recomendada pelo presente Relatório.
A UNESCO espera participar deste
modo no novo rumo que ultimamente tomou a análise da diversidade cultural, em
consonância com o trabalho realizado na década de 1950 e as conclusões do
relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (1996).
Num trabalho apresentado em 1952
à UNESCO, sob o título "Raça e História”, o antropólogo francês Claude
Lévi-Strauss sustentava que a proteção da diversidade cultural não deveria
limitar-se à manutenção do status quo, pois é a própria diversidade que deve
ser salva e não o conteúdo histórico que cada época lhe conferiu.
Proteger a diversidade cultural
consistiria, assim, não tanto em garantir a perpetuação indefinida de
determinada fase da diversidade, mas em assegurar que ela possa continuar a
desenvolver-se. Pressuporia uma razoável capacidade de aceitar e manter o
intercâmbio cultural, sem o considerar, no entanto, uma imposição do destino. O
Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento havia já defendido,
em termos semelhantes, que a diversidade cultural não era simplesmente um bem
que se deveria preservar, antes consistia num recurso a fomentar, tendo em
vista os seus potenciais dividendos, nomeadamente em âmbitos relativamente
distanciados de um entendimento estrito de cultura. O presente Relatório
procura dar sequência às principais conclusões do relatório anteriormente
referido.
Nos últimos anos, os argumentos
que a UNESCO incorporou na sua reflexão sobre a diversidade cultural foram
assumidos por um número considerável de programas e organismos no quadro do
sistema das Nações Unidas e das instituições de Bretton Woods.
O Banco Mundial, por exemplo,
seguiu em diversas ocasiões o exemplo fornecido pela UNESCO no contexto da
Década Mundial para o Desenvolvimento Cultural (1988-1997), tendo levado a cabo
investigações sobre os vínculos entre a cultura e o desenvolvimento. Também o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) publicaram importantes relatórios
sobre o assunto. Posteriormente, o Grupo de Alto Nível para a Aliança das
Civilizações conferiu um relevo sem precedentes às iniciativas de fomento do
diálogo entre pessoas, culturas e civilizações. Um outro objetivo do presente
relatório consiste em contribuir para a reflexão e os estudos a que se dedicam os
programas e organismos associados à UNESCO, em particular os relativos ao
desenvolvimento.
O que é a diversidade cultural?
A diversidade cultural é, antes
de mais nada, um fato: existe uma grande variedade de culturas que é possível
distinguir rapidamente a partir de observações etnográficas, mesmo se os
contornos que delimitam uma determinada cultura se revelem mais difíceis de
identificar do que, à primeira vista, poderia parecer. A consciência dessa
diversidade parece até estar sendo banalizada, graças à globalização dos
intercâmbios e à maior receptividade mútua das sociedades. Apesar dessa maior
tomada de consciência não garantir de modo algum a preservação da diversidade
cultural, contribuiu para que o tema obtivesse maior notoriedade.
A diversidade cultural
converteu-se também numa questão social de primeira ordem vinculada à maior
diversidade dos códigos sociais que operam no interior das sociedades e entre
estas. Perante essa variedade de códigos e perspectivas, os estados nem sempre
encontram as respostas apropriadas, por vezes urgentes, nem logram colocar a
diversidade cultural ao serviço do bem comum. Em contribuição à elaboração de
respostas específicas para esta situação, este Relatório procura ser um marco
de referência que permita compreender melhor os desafios inerentes à
diversidade cultural. Nesse sentido, torna-se necessário identificar, para além
da própria existência da diversidade, algumas das necessidades teóricas e
políticas que inevitavelmente a diversidade não deixa de levantar.
A primeira dessas dificuldades
liga-se à natureza especificamente cultural da diversidade. Para medir a sua
heterogeneidade cultural, muitas sociedades lançam mão de indicadores étnicos
ou linguísticos.
A primeira tarefa será, assim,
examinar as diferentes políticas aplicadas sem perder de vista que o tema em
análise é a diversidade cultural e não esses indicadores a que por vezes se
reduz a diversidade. Uma solução poderia ser a adoção da mais ampla definição
possível de cultura, segundo o espírito de consenso consagrado pela Declaração
da Cidade do México sobre Políticas Culturais da UNESCO (1982), isto é, ”o
conjunto dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e
efetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abarca, para além
das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser
humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”. Esta definição tem
o mérito de não adotar uma visão da cultura demasiado restritiva e de não se
centrar num aspecto particular para definir o que a caracteriza.
Uma outra dificuldade tem a ver
com a caracterização dos elementos constitutivos da diversidade cultural. A
esse respeito, os conceitos de cultura, civilização e povos têm conotações
diferentes segundo o contexto, por exemplo, científico ou político. Enquanto o
conceito de culturas evoca entidades que tendem a definir-se com relação umas
às outras, o termo civilização refere-se a culturas que afirmam os seus valores
ou visões do mundo como universais e assumem uma atitude expansionista
relativamente a outras que as não partilham (ou ainda o não fazem). É, pois, um
desafio muito real procurar levar à coexistência pacífica diferentes centros de
civilização. Segundo a concepção da UNESCO – e esta é uma construção muito
afastada das construções ideológicas que profetizam o choque de civilizações –
deve entender-se por civilização um processo em curso encaminhado para a
conciliação de todas as culturas do mundo com base no reconhecimento da sua
igual dignidade, no quadro de um projeto universal contínuo.
Uma terceira dificuldade
prende-se à relação entre as culturas e a mudança. Transcorreram praticamente
sete décadas do século XX antes que se compreendesse que as culturas são
entidades que se transformam. Até então, verificava-se a tendência para
considerar que permaneciam essencialmente imutáveis, e que o seu conteúdo se
transmitia por canais diversos, como a educação ou ritos iniciáticos de
diferentes tipos. Na atualidade, a cultura é entendida mais como processo: as sociedades
vão-se modificando de acordo com os caminhos que lhes são próprios. O conceito
de diferença resume bem essa dinâmica particular, segundo a qual, ainda que se
modifique, uma dada cultura permanece a mesma.
Torna-se, portanto, necessário
definir políticas que confiram uma inflexão positiva a estas diferenças
culturais, de modo a que os grupos e as pessoas que venham a entrar em contato,
em lugar de se entrincheirarem em identidades fechadas, descubram na diferença
um incitamento para continuar a evoluir e a mudar.
Essas considerações vão no
sentido de uma nova perspectiva sobre a diversidade cultural, uma perspectiva
que leve em conta a sua natureza dinâmica e os desafios q ue as mudanças
culturais impõem à identidade.
Isso envolve necessariamente uma
mudança substancial na função que a UNESCO desempenha neste contexto. Na
verdade, se, durante muito tempo, a preocupação da Organização se centrou na
salvaguarda de locais, práticas e expressões culturais sob risco de
desaparecer, agora deve aprender-se também a acompanhar a mudança cultural de
modo a ajudar os indivíduos e os grupos a gerir mais eficazmente a diversidade.
Assim, constitui o desafio último: gerir a diversidade.