Não, ele não gostava de livros; ele amava livros, era louco
por livros; de tal forma que teve ao seu alcance uma Bíblia, uma coleção
amarela de romances franceses, as obras de Charles Dickens, Ésquilo,
Shakespeare e muitos outros. Em meio ao
universo de “natureza morta”, tudo parecia uma metáfora viva entre livros e
girassóis.
Por volta de 1883, em
carta aos amigos, ele escreveu: ”Os livros, a realidade e a arte são uma só
coisa para mim”. Em janeiro de 2015, a biblioteca pública de Milão, na Itália,
recebeu a exposição “Van Gogh e sua paixão pelos livros”. Da exposição fizeram
parte cerca de trinta livros de diferentes autores que tratam da estreita relação
entre pintura e literatura no cotidiano desse pintor.
Van Gogh comenta, em Cartas a Théo, de como é bela a arte
em Shakespeare e se pergunta: “Quem é misterioso como ele? Suas palavras e sua
maneira de fazer equivalem a um pincel fremente de febre e emoção. Mas é
preciso aprender a ler, como é preciso aprender a ver e aprender a viver” (p.
27). Na condição de leitor, Van Gogh não esconde
a sua admiração por Balzac e Zola; ele enfatiza que as obras desses escritores “produzem
raras emoções artísticas naqueles que os amam, justamente porque eles abrangem
a totalidade da época que descrevem”.
Os livros que Van
Gogh levou para o seu universo pictural mostram como a paixão pela arte vence o
tempo. As opiniões de Van Gogh acerca de pintura e literatura também são
endereçadas ao amigo Emile Bernard; especificamente a carta que ele escreveu
numa quinta feira, em 19 de abril de 1888, revela:
Há
tanta gente [...] que imagina que as palavras não significam nada – pelo
contrário, a verdade é que dizer uma coisa bem é tão interessante e difícil
quanto pintá-la. Há a arte das linhas e das cores, mas também existe a arte das
palavras, e esta permanecerá.
Sim, a arte da
palavra permanecerá. É nesta perspectiva, que o livro Impressões de leitura do texto literário reúne, na primeira parte, um
conjunto de textos/relatos oriundos de aulas expositivo-dialogadas; leituras de
textos teóricos e literários; seminários, debates, relatos de experiência,
análise e produção de materiais didáticos, entre outras atividades vivenciadas nas
disciplinas “Leitura do texto literário” e “Literatura infantil e Juvenil”
ministradas por mim, no Mestrado Profissional em Letras (Profletras), na
Universidade de Pernambuco (UPE), Campus Garanhuns. Para tanto, fez-se
necessário manter o foco no Projeto “Literatura comparada: desafios e perspectivas na
formação do leitor” que está vinculado ao Grupo de estudos comparados: literatura
e interdisciplinaridade (Grupec/UPE).
A arte da palavra
permanecerá, porque o leitor participante – quer seja no campo da oralidade ou
da escrita, na cidade grande ou no interior – intui, desde sempre, “a poética que
nos funda”, como diria Bartolomeu Campos de Queiros: um dos leitores mais
sensíveis do mundo. Nessa direção, vejamos os relatos de Impressões de leitura do texto literário. No primeiro, temos “O
mundo pelas lentes da literatura”, um texto tecido pelo desejo e “a profunda necessidade de
esquecer por um instante todos os apuds,
notas de roda pé, recuos à direita, número de páginas e datas”.
Foi este e continua sendo um dos objetivos aplicado nos
exercícios de escrita e redobrada a problematização quanto às ementas, aos
conteúdos programáticos e às referências das citadas disciplinas. O nosso propósito é deixar a literatura falar
por si mesma, mostrar a sua leveza.
No relato “Roda de lembranças” perpassam “imagens da nossa
infância, adolescência e da experiência com a literatura”; as histórias e os poemas
“n” vezes contados e narrados fazem parte do universo que sempre nos surpreende.
No terceiro relato, um recado instigante chama a nossa atenção: “Se não ficar
tão bom, é porque faltou”... É isto mesmo que acontece e que se intui desde
cedo, porque o pão está caro e não cabe no poema, porque a liberdade, ainda que
pequena, pode nos salvar dos dilúvios cotidianos.
Ora, ora, quem disse que dialogar está fora da validade? Nesses tempos
de banalização, em meio aos incessantes toques de celular e das “músicas que
enredavam corriqueiramente os caminhos de uma sociedade eleitoreira”, duas
amigas relatam em “Diálogo literário”, de como “aprenderam a jogar o jogo do
contente”. Apesar do tempo corrido, cabe “Um ‘dedim’ de prosa”, assim, como se
diz no Nordeste. Nesse ritmo, dois educadores nordestinos
pelejam em verso e prosa sobre “a missão de valorizar, de cultivar e divulgar
[...] a riqueza da cultura popular da gente quase sempre desprovida de riquezas
materiais [e que] não se deixa abater”.
Com o intuito de estabelecer uma possível relação entre o mundo real e a
fantasia, o quinto relato – “Os mundos encantadores da Literatura” – convida
leitores e leitoras a “enxergar o mundo pela janela da
imaginação, [considerando que uma] boa leitura tem o poder de nos fazer sentir
acompanhados, mesmo quando estamos sozinhos”. O sétimo relato se transforma em “Confissões
literárias”, como o próprio título sugere. Nessa perspectiva, as narradoras
falam das inseguranças que, em geral, as pessoas sentem quando desafiadas a dar
asas à imaginação na escrita subjetiva.
Mais um texto evoca a emoção da descoberta da leitura do
mundo; trata-se de “O nascer do leitor”: um relato que envereda na história de
uma “guardiã de tesouros feitos de palavras, que ensina a compreender o mundo e
a si mesma, semeando sonhos e esperanças”. O nono relato – “De bicho entre os detritos a apanhador
de desperdícios” – denuncia
também as desigualdades sociais; é um soco no estômago porque o bicho-homem
cata subsistência do lixão e como se não bastasse, o poeta traz uma provocação:
“O que é bom para o lixo é bom para a poesia”.
O último relato – “O labirinto da vida: em busca de
reexistir” – é fruto do convite que eu fiz à Dra. Jaciara Gomes (Vice
Coordenadora do Profletras, Campus Garanhuns) para ela escrever um posfácio
para este livro. Motivada com a repercussão do referido Projeto, Jaciara
apresentou um texto que eu gostaria de ter escrito. Sem rodeios, inclui seu
texto neste volume, pois a leitura literária – conforme ela sugere – ganha mais
força, quando mergulhamos também na crítica escritura de Lúcio Cardoso, Milan
Kundera e Octávio Paz, entre outros.
A segunda parte do livro traz um conjunto de comunicações
apresentadas na Mesa
redonda “Repensando o lugar da literatura no Ensino
Fundamental”, realizada em maio de 2014, junto ao Profletras, na UPE, Campus
Garanhuns. A referida atividade foi apresentada em quatro momentos, a saber:
1º) Quando a literatura abre outras literaturas.
2º) Para não esquecer o
direito à literatura.
3º) Do
cotidiano literário: autor/texto/leitor.
4º) Espaços
de leitura literária e mediação.
Para finalizar, cabe a liberdade de sublinhar um trecho da
Apresentação que o Dr. Benedito Bezerra fez para este livro. Não é atoa que ele questiona o que “muitos
diziam” acerca do nosso Profletras:
...muitos
diziam ser, de algum modo, menor. “Será que tem o mesmo valor do mestrado
acadêmico? Será que poderei fazer o doutorado com o título de mestre do
PROFLETRAS? Será apenas algum tipo de especialização melhorada, ou disfarçada?”
Seria o mestrado profissional o burrinho pedrês entre os já provados e
aprovados cavalos do mestrado acadêmico? Penso que o tempo e a experiência
vivida com maestria por esta primeira turma foi o bastante para responder e
esclarecer esses questionamentos.
E a propósito de livros e girassóis, convém reiterar que “é
preciso aprender a ler, como é preciso aprender a ver e aprender a viver”, como
disse Van Gogh.
Na minha intuição, cada parte deste livro parece uma semente,
algo que alimenta; o conjunto sugere um girassol semeado em meio a diversidade;
a sua leveza reside entre a memória afetiva e o desamparo do homem-bicho e
outros maiores e menores abandonados que permeiam o texto literário.
Nordeste do Brasil, novembro de 2015.
Graça Graúna
(Organizadora)
REFERÊNCIAS
BIBLIOTECA
VILLA-LOBOS. Disponível em: http://www.bvl.org.br/van-gogh-e-sua-paixao-por-livros/#prettyPhoto. Acesso em
21. Set. 2015.
QUEIRÓS,
Bartolomeu Campos de (Org.). Para querer
bem - Manuel Bandeira. São Paulo: Global, 2013.
VAN
GOGH, Vincent. Cartas a Théo. Porto
Alegre: L&PM, 1999.
______.
Carta a Emile Bernard. Disponível em: http://vangoghletters.org/vg/letters/let599/letter.html.
Acesso em 21.set.2015.