Da oralidade ao papel
Fonte: CORREIOBRAZILIENSE • 3,
Brasília, segunda-feira, 29
de fevereiro de 2016 •
Osvaldo Reis/Esp. CB/D.A Press
Daniel Munduruku: “Comecei a
mudar um pouquinho o jeito de dar aula,
porque inseri os mitos
indígenas”
“O ser indígena sabe escrever de várias maneiras, se a gente está
fazendo um colar ou uma esteira, por exemplo, estamos escrevendo e registrando
nossa cultura”. Nas palavras de Graça Graúna, professora e primeira índia com
doutorado na área de literatura, a arte indígena tem várias faces, que vão da
tradição oral aos livros com o retrato da cultura dos povos. Como ressalta
Graúna, as histórias das chamadas sociedades tradicionais, não são voltadas
para determinada faixa etária, mas a representação de mitos, lendas, aventuras
e costumes encantam crianças e adultos ao dar voz a contos passados por
gerações. “Partindo de histórias contadas pelos mais velhos, os mais jovens
aprendem muito, sem rótulos, apenas com a percepção dentro da cultura indí-
gena”, acrescenta a escritora. Assim como a professora, outros escritores, como
Yaguarê Yamã e Daniel Munduruku, transformam o grafismo das etnias a que
pertencem em livros que fortalecem a literatura brasileira e mostram a força do
imaginário tradicional.“A história oral émuito bonita e tem que ser mantida,
mas quando a gente passa a escrever essa história, além de passar toda a
tradição mostramos o que existe na nossa cultura”, afirmaYaguarê, que completa
dizendo que escrever tanto contos tradicionais, quanto os inspirados em
personagens reais, ajuda manter vivos os ensinamentos e os encantos dos
povos:“Acho que tem muita história perdida, porque osmais velhos estãomorrendo
e não estão conseguindo passar esses contos com a agilidade que estamos
vivendo”. Já para o professor Daniel Munduruku, por mais que a divulgação da
cultura seja importante, a publicação de livros ainda é difícil. “Quando
pensamos em publicar um livro, precisamos pensar no mercado consumidor da
sociedade que é seletivo e cria barreiras para publicar livros de literatura
indígena”, afirma. Segundo Munduruku, as editoras se interessam em publicar
quando há a possibilidade de o governo colocar nos editais, mas como esses
também são restritos, a literatura continua prejudicada.
Partindo
de histórias contadas pelos mais velhos,
os mais jovens
aprendem muito” (Graça Graúna, escritora)
Íris
Cruz/Esp. CB/D.A Press
“O índio sabe escrever de várias maneiras, se a gente está fazendo um colar ou uma esteira, porexemplo, estamos escrevendo e registrando nossa cultura” (Graça Graúna)
Escritores indígenas encantam
crianças e adultos com
histórias tradicionais
Histórias encantadas
Yaguarê conta que, na comunidade em que vive, faz parte da cultura
diária sentar em um local chamado Mirichawaruca, que significa casa de contar histórias em Maraguá, e reunir
crianças e adultos à luz do por-do-sol para ouvir contos. “Desde pequeno
gostava de criar histórias e imaginar. Na minha etnia somos conhecidos por ser
contadores de histórias de fantasmas”, acrescenta. Foi de hábitos como esse que
o escritor decidiu transformar as riquezas orais em páginas de livros e, assim,
conquistar diferentes idades com narrativas e ilustrações que simbolizam as
aventuras da tribo. Um curumim, uma canoa, Pequenas guerreiras e Formigueiro de Myrakãwéra
são exemplos de obras publicadas por Yamã. “Os mais velhos,
curandeiros e chefes das aldeias contam histórias para os pequenos se
prepararem e aprenderem a lidar com os espíritos da floresta, o futuro e os perigos
da vida”, comenta o professor. A inspiração para escrever vem do amor às
raízes. “Hoje sou uma pessoa realizada que, além de propagar a contação de
história do meu povo, recrio e crio histórias. A história é minha, mas todos os
personagens e monstros que habitam minha aventura são do povo”, completa.
A luta
Autora de Canto Mestiço, Flor da
mata e Criaturas de Ñanderu, Graça Graúna, conta
que a sociedade ainda é preconceituosa
e dominante. Por isso não aceita as diversas formas de escrita indígena. “Tiramos o preconceito, mas sempre vão olhar a gente como se fosse um animal exótico, como se a gente não tivesse o que dizer”,
critica a escritora. Segundo Graúna, a
literatura dos povos tradicionais reporta à maneira de viver, não se refere ao eu
individualista, mas ao eu coletivo, ao povo. “Escrevo mostrando que a palavra indígena sempre existiu. A literatura está no jarro, no rosto, no corpo; ao dançar a gente escreve história por meio do ritmo, por exemplo”, ressalta a professora. O
professor e escritor Daniel Munduruku explica que algumas pessoas acreditam que colocar histórias indígenas no papel é fazer uma violência com a oralidade, mas, para ele, o trabalho dos escritores é preservar uma memória que o hoje tem o suporte do livro para se manter. “Acho que o registro é fundamental para criar uma memória afetiva
e ancestral”, acrescenta. Diretor-Presidente
do Instituto Uk´a—Casa dos Saberes Ancestrais, Daniel Munduruku
conta que a literatura despertou nele interesse filosofia e virou educador. “Na época que era professor, comecei a mudar um pouquinho o jeito de dar aula, porque inseri os mitos indígenas e mostrar que a nossa cultura segue o mesmo processo que o mundo inteiro”, explica Munduruku. Segundo ele, a escrita veio como uma resposta às perguntas que os alunos faziam sobre a vida nas tribos. “Um dia uma menina me perguntou onde encontrava as histórias que contava para ler e isso me alertou para a ideia de escrever aqueles contos”, comenta. Kabá Darebú, Coisas de índio e O segredo
da vida são alguns nomes de obras do professor.