Poema de Drummond sobre o Rio Doce, que circula em redes sociais, nunca
foi publicado em livro
Publicado
em 1984 no jornal Cometa Itabirano, a citação não chegou a ganhar versão em
livro, o que levou alguns a duvidarem da sua autenticidade
Fonte: Carlos André Moreira
17/11/2015
Foto:
Reprodução / Facebook
Começou
com um texto assinado pela jornalista Mariana Filgueiras no jornal O
Globo deste fim de semana. Ao recuperar obras literárias e
musicais que já haviam abordado a paisagem e as águas do agora destruído Rio
Doce, a reportagem evocava, entre outras canções, versos e trechos de prosa, um
poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Lira Itabirana, que logo,
fotografado diretamente da edição do jornal, tornou-se viral devido ao caráter
"profético" de suas palavras:
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Publicado
em 1984 no jornal Cometa Itabirano, o poema não chegou a ganhar versão
subsequente em livro — o que levou alguns portadores de antologias de
poemas do autor a, em um primeiro momento, duvidar da autenticidade da citação,
mas os versos são mesmo de Drummond.
Escrito em um período em que a dívida
externa era um fantasma no horizonte de qualquer tentativa de crescimento no
Brasil, Lira Itabirana, com versos curtos e diretos que buscam inspiração nas
quadras da poesia popular, faz a comparação entre a atividade mineradora
incessante e lucrativa e a dívida "eterna" do país, pouco aplacada
mesmo com as toneladas de ferro exportado.
Apesar do aparente tom antecipatório,
ele apenas reitera alguns elementos com que o poeta mineiro trabalhou ao longo
de toda sua carreira: crítica social e política aliada à evocação nostálgica de
uma Minas Gerais que já não existia. Lira Itabirana é apenas um dos exemplos de
poemas nos quais Drummond refletia, entre melancólico e alarmado, com os
efeitos da mineração em seu Estado natal. Qualquer deles, agora, poderia ser
relembrado com o mesmo caráter assombroso.
Não é de estranhar que Drummond fale
da Vale em Lira Itabirana. Ambos são conterrâneos. Itabira, a cidade a 104
quilômetros de Belo Horizonte em que Drummond nasceu, em 1902, foi a mesma em
que surgiu a Companhia do Vale do Rio Doce, em 1942. Antes disso, nos séculos
18 e 19, a cidade já havia passado por ciclos de mineração de ouro, em pequenas
empreitadas sustentadas principalmente por mão de obra escrava. O ouro na
região, contudo, era menos abundante do que em outras cidades mineiras, e por
isso Itabira não experimentou grande crescimento econômico. O próprio Drummond
identificava-se, na saudosa crônica Vila da Utopia, como um "filho da
mineração", como todo Itabirano:
"Parecia-me que um destino
mineral, de uma geometria dura e inelutável, te prendia, Itabira, ao dorso
fatigado da montanha, enquanto outras alegres cidades, banhando-se em rios
claros ou no próprio mar infinito, diziam que a vida não é uma pena, mas um prazer.
A vida não é um prazer, mas uma pena. Foi esta segunda lição, tão exata como a
primeira, que eu aprendi contigo, Itabira, e em vão meus olhos perseguem a
paisagem fluvial, a paisagem marítima: eu também sou filho da mineração, e
tenho os olhos vacilantes quando saio da escura galeria para o dia claro."
Essa situação mudou depois que a
cidade passou a ser o ponto inicial do chamado "quadrilátero
ferrífero", a região de extração do ferro que inclui também Mariana, além
de Sabará e Ouro Preto, entre outras. A expansão mineradora, contudo, não era
feita sem um preço a pagar, algo que Drummond já havia apontado em um poema de
1973. No seu livro Menino Antigo, o poeta exporia sua inquietação com os
efeitos da retirada de minério da região, em A Montanha Pulverizada, poema no
qual narra o desaparecimento do Pico do Cauê. Outrora cartão postal e marco do
município de Itabina, o Pico do Cauê terminou reduzido a nada pela atividade
mineradora:
Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
(...)
Esta manhã acordo e não a encontro,
britada em bilhões de lascas,
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões,
no trem-monstro de cinco locomotivas
— trem maior do mundo, tomem nota —
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.
britada em bilhões de lascas,
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões,
no trem-monstro de cinco locomotivas
— trem maior do mundo, tomem nota —
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.
Anos depois, em 1984, Drummond faria
outra versão desse mesmo poema e a publicaria no jornal Cometa Itabirano —
o mesmo no qual saiu também Lira Itabirana.
Em O Maior Trem do Mundo — mais
tarde compilado em Poesia Errante, Drummond repete o mote do trem que leva
embora não apenas a riqueza mineral extraída da terra, mas a própria terra e
seu coração. O poema foi escrito em uma época em que a economia de Itabira já
começava a dar mostras de colapso, sem que a cidade tivesse se beneficiado da
riqueza gerada pelo empreendimento. O poema de Drummond aborda, com melancolia,
a possibilidade de esgotamento dos veios minerados na cidade e seu abandono
previsível quando não houver mais o que tirar do coração da terra:
O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.
De acordo com a pesquisadora Letícia
Malard, autora do livro No Vasto Mundo de Drummond (Editora UFMG, 2005), a
"corrosão" é uma metáfora forte e recorrente na poesia de Drummond:
"uma corrosão no sentido literal, socioeconômico — a serra sendo
corroída pela retirada do minério — e uma corrosão metafórica — a
alma corroída do itabirano, uma vez que procura a 'sua' serra, a qual lhe
parecia eterna, e não mais a encontra."
Logo, a preocupação de Drummond com
os efeitos da mineração em sua região nada tinha de profética. E se agora ela
surpreende, é porque, infelizmente, ninguém estava prestando atenção.