Povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul (Foto: Verena Glass), disponível em: www.reporterbrasil.org.br
Memória de um dia muito especial para mim
No caminho da noite
Texto de: Anastacio Peralta Kaiowá Guarani (Adital - CNPI)
Dia 27 de outubro de 2010 nos organizamos para fazer uma visita a terra indígena Ypo’i, no município de Paranhos, mais ou menos 285 km de Dourados, com representantes do conselho do Aty guassu, Nelson Cabreira e Elizeu Lopes, líder da terra indígena Kurussu Amba, que fica no município de Coronel Sapucaia, e o representante CNPI, Anastácio Peralta. Esta visita só foi possível com apoio de aliados desta causa, os quais junto conosco saíram de suas casas logo após o almoço. No dia 27 de outubro, seguimos viagem, passando em Ponta Porã, Amambaí e na TI Limão Verde, visitando o professor Oriel; depois chegando até a casa do ñanderu Atana Texeira (ele fez uma reza, abençoando nossa viagem; para tudo ocorresse bem). Logo após a benção, nos despedimos; já era mais ou menos 18hs30min e seguimos para nosso destino combinado, para nos encontrar na beira da rodovia. Neste percurso, nos perdemos na comunicação e do local. Quando conseguimos falar, tivemos que voltar para trás. Mas, não demorou muito, chegou um telefonema nos avisando que o guia já estava no local. Nos encontramos, retiramos nossas bagagens do carro, colocamos as mochilas nas costas e seguimos com o apoio dos guerreiros. Nos despedimos de nossos apoiadores. Tudo muito rápido, para não sermos vistos pelos pistoleiros, para que estes não nos percebessem. Entramos, meio ao mato, dentro da escuridão da noite, muito assustados. Sem muita prática de andar durante a noite e pelo mato com muito peso nas costas e temendo; mas, por amor à vida daqueles que lá estávamos, seguimos o caminho em silêncio, com o espírito de solidariedade e a bênção do ñanderu Atana e ñandejara, e com o pensamento preso nas crianças de Ypo’i, fomos renovando as energias e obtendo força, coragem e tudo foi ficando cada vez mais próximo. A bagagem ficou leve, a noite clara e nossos olhos desembaraçados na caminhada, enxergando as cercas e buracos. Até meus ouvidos se abriram para ouvir os sons da mata.
Já era mais ou menos meia noite quando a lua surgiu mostrando seu rosto pela metade, linda no horizonte, nos presenteando com um clarão prateado, me deixando mais encantado e emocionado com este grande encontro, local marcado pela dor de mais de um ano do massacre de Jenivaldo Vera, que foi brutalmente assassinado e a dor de até o momento ainda não ter encontrado o guerreiro e companheiro Rolindo, que, desde aquela data, está desaparecido. Ali meditamos e seguimos mais 40min de caminhada até o local. Pernoitamos na casa da liderança.
A orquestra da mata
Levantamos cedo e fomos tomar café ouvindo o som das águas da cachoeira, do canto dos pássaros em orquestra saudava mais um dia na mata. Seu Bernardo então conta sua história enquanto as crianças levantam todas felizes. Ao vê-las sinto grande alegria e meu pensamento fazia mil questionamentos. Agradecido dizia: valeu! Valeu à pena o sofrimento pelo caminho na mata adentro... Senti que a causa era justa e nobre ao ver naqueles olhos pequenos a marca de um povo que luta em busca da yvy maranẽ’ỹ (terra sagrada). Após longa conversa em volta do fogo, fomos fazer várias visitas, acompanhados por seu Catalino e seu Bernardo, eles iaô nos falando de sua trajetória, nos mostrando a localização onde seus pais moravam. No lado norte tinha uma casa de reza, no lado sul uma cabeceira do rio. Era um lugar onde tinha muitos Guarani. Aqui não tinha só esse mato; ele ia até o Paraguai. Havia caça, tinha muito peixe; ninguém passava fome. Na primeira casa mora o senhor Fausto Vera. Nos apresentarmos e convidamos para nos reunir depois do jejum.
Reza, memória e solidariedade
Às nove e meia da manhã iniciou a reza, dando as boas vindas e agradecendo a comida que chegou, pois já não tinham nada para comer. Começando a reunião, seu Catalino iniciou com a seguinte fala: "A nossa situação não esta nada bom porque já tá fazendo um ano que Jenivaldo foi encontrado morto neste riozinho e o Rolindo até hoje não sabemos se está morto, nem onde ele está; por isso, em agosto, nós resolvemos voltar para cá para procurar meu filho, mas até agora nós não achamos, ninguém foi preso para pagar pelo crime que cometeram contra Jenivaldo, morto como um animal qualquer. Como se não bastasse tudo o que já aconteceu com nós, a juíza ainda deu 10 dias de prazo pra gente sair daqui, mas ninguém vem aqui nos visitar, ficar aqui com a gente, nem FUNAI; porque o fazendeiro não deixa entrar, estamos como se tivéssemos numa cadeia. Mas não tem nada, não. Estamos firmes e sabemos que Deus é grande e é por nós e viemos para cá preparados para ficar aqui mesmo. Não tentem tirar a gente daqui porque aqui já perdemos nosso parente e se for tirar nós daqui é melhor matar todos nós porque não vamos sair.
Agradeço a vinda de vocês aqui principalmente de você Anastácio e os demais parentes. Temos que montar uma estratégia para chegar comida para nós aqui, se não fosse vocês virem hoje já não teríamos mais comida para por na panela, nossa criança ia chorar de fome".
Elizeu então toma a palavra e conta um pouco como foi que fizeram lá em Kurussu Amba, onde montaram a estratégia de rezar, o que amoleceu o coração dos juízes se a polícia chegava ou outras pessoas para falar com a gente então do meio do mato respondíamos que só falaríamos diante da FUNAI e do Ministério Público Federal (MPF), porque esse a gente conhecia e acreditava. Quero vir para cá para ajudar vocês.
Seu Nelson Cabreira conselheiro, representante do Conselho de Aty Guassu, disse: "Não temos nossa arma mbaraka, mimby e reza. Nós sabemos tudo contra a maldade. Aqui vocês têm que ter um kacike rezando direto para afastar a maldade e trazer muita gente para cá, de coragem, para as lutas. Só a reza mesmo tem que estar a caráter com o corpo pintado, com flecha, com arco, mbaraka e mostrar quem nós somos.
Companheiros, eu vim até aqui com o propósito de trazer nossa solidariedade, mas também para levar noticias de como realmente vocês estão. Isso só foi possível porque nossos aliados nos trouxeram até a estrada. Estou aqui para ajudá-los, pois a luta pela reconquista do território é muito difícil e vale sangue, lágrimas; mas não pode desanimar nem se enfraquecer, pois o maior inimigo do povo é o desânimo Nós temos que estar sempre animados e com sorriso no rosto, para enfrentarmos os problemas e resolvê-los na medida do possível. Não devemos ter medo.
Ao sair daqui vamos buscar meios para que os alimentos cheguem até vocês e que possamos encontrar transporte para voltarmos mais vezes. Encerramos a reunião para apreciar um delicioso almoço que foi preparado num fogão de lenha, junto com todos os membros daquela comunidade.
As horas passaram rápidas e quando o sol já se escondia no entardecer fomos novamente acompanhados por aqueles bravos guerreiros que nos guiaram pelo caminho até a cidade. Neste percurso de volta nos acompanharam quatro homens e quatro mulheres. No meio do caminho encontramos um grupo de guerreiros que retornavam para ajudar na luta de reconquistar seus direitos. Conversamos um pouco e cada grupo seguiu seu destino Eu voltei sentido em meu corpo a fadiga, o cansaço; porém, na alma a alegria de ter encontrado meus parentes, de ter cumprido com a missão de ir e levar ânimo aos que estão em situação difícil. Sou feliz hoje por ter encontrado eles animados mesmo diante de uma política de despejo; de encontrá-los firmes no propósito de ficarem até o dia em que a justiça brasileira lhes devolva o que é deles por direito: a TERRA SAGRADA (yvy maranẽ’ỹ).
Dourados, novembro de 2010.
Nota: ao publicar em meio impresso, favor citar a fonte e enviar cópia para: Adital - Caixa Postal 131 - CEP 60.001-970 - Fortaleza - Ceará - Brasil
Um comentário:
Graça querida,
Com saudade de seu blog, lhe reencontro "caminhando" pelo sagrado chão de Gaia ao encontro de irmãozinhos índios... Senti sua emoção no relato, enquanto seu coração batia descompassado ao encontro da Paz.
Beijos, com carinho,
Madalena
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