VI ENCONTRO DE ESCRITORES E ARTISTAS INDÍGENAS
I Colóquio entre Tradição Oral e Literatura Brasileira
O que une e o que separa os contadores de história e os poetas das sociedades tradicionais e das chamadas sociedades envolventes?
A oralidade continua viva, seja por meio dos versos ou das narrativas; seja a narração dos mitos de origem, dos eventos astronômicos, das migrações de diferentes grupos étnicos, dos conflitos intertribais (pois não existe sociedade sem conflitos) e outros acontecimentos que marcaram as sociedades indígenas antes da irrupção dos colonizadores.
Conforme a ciência indígena, os ventos sopram para fortalecer o espírito. O ato de narrar, tanto quanto o versejar configuram um conjunto de vozes oriundas da tradição, da ancestralidade. Por isso, a oralidade continua viva.
Basta um lugar e um olhar receptivos, um(a) leitor(a) atentos para o ato de narrar e o versejar se expandir igual a “seiva que percorre o corpo das árvores”, conforme intuímos em uma passagem da carta do chefe Seattle, anexada ao livro Banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira, de Daniel Munduruku (2000). É nessa atmosfera que escritores(as) indígenas (Yaguarê Yamã, Renê Kithãulu, Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Marcos Terena e Darlene Taukane, para citar alguns) encantam platéias quando se juntam em torno da “contação de histórias”; nesse ritmo, também se juntam para cantar o amor à Terra porque se reconhecem filhos da terra e parentes em meio a diferentes etnias.
Stuart Hall (1999:86) fala do desafio que é “existir como uma identidade ao longo de uma larga gama de outras diferenças”. Atento a esse desafio, Daniel Munduruku e outros parentes escritores indígenas dissolvem as fronteiras na “contação de histórias” e mostram ao público um mundo diferente, do qual geralmente se pensa que as pessoas indígenas são incompetentes, selvagens, preguiçosas e arredias, entre outros predicativos que dão conta do desrespeito que se tem às diferenças. E não é raro, nessas ocasiões, sobretudo no contato com o público infantil e/ou juvenil, os autores se expressarem com humor a respeito das diferenças.
A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se preservando na autohistória de seus autores e autoras e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones.
Nesse processo de reflexão, a voz do texto mostra que os direitos dos povos indígenas de expressar seu amor à terra, de viver seus costumes, sua organização social, suas línguas e de manifestar suas crenças nunca foram considerados de fato. Mas, apesar da intromissão dos valores dominantes, o jeito de ser e de viver dos povos indígenas vence o tempo: a tradição literária (oral, escrita, individual, coletiva, híbrida, plural) é uma prova dessa resistência. Essa tradição é abordada, aqui, a partir de um conjunto de textos literários contemporâneos de autoria indígena (individual) de língua portuguesa, em que se manifesta a literatura-assinatura de milhões de povos excluídos na história dos 500 anos.
O texto literário convoca a uma leitura interdisciplinar e, ao mesmo tempo, permite observar a relação entre identidade, autohistória, deslocamento e alteridade entre outras questões que se depreendem da poesia e da narrativa. Essa relação suscita uma leitura entre real e imaginário, oralidade e escrita, ficção e história, tempo e espaço, individual e coletivo e de outros encadeamentos imprescindíveis à apreensão da autonomia do discurso e da cumplicidade multiétnica (diálogo) que emanam dos textos literários (poemas, contos, crônicas) e da ecocrítica nos depoimentos, nas entrevistas, nos artigos e outros textos de autoria indígena.
A literatura indígena continua se perguntando: em quanto tempo passam 500 anos?
Identidades, utopia, cumplicidade, esperança, resistência, deslocamento, transculturação, mito, história, diáspora e outras palavras andantes configuram alguns termos (possíveis) para designar, em princípio, a existência da literatura indígena contemporânea no Brasil, até onde pudermos apurar os (des)entendimentos do(s) termo(s).
Gerando a sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura Nacional. Como distinguir as especificidades da literatura indígena em meio ao processo de transculturação? Como reconhecer a existência dessa literatura, em meio a tantos “apagamentos”? Quais os pontos de confluência entre os diferentes saberes sagrados dos povos indígenas no Brasil ou em Quebec, no Paraguai ou no México, na Guatemala ou no Chile, no Peru ou na Bolívia, levando em conta o processo de hifenização?
Esse questionamento é um convite para repensar também “a utopia em seu sentido antropológico como toda possibilidade de sonhar um mundo melhor, todo projeto coletivo, toda idéia que dê sentido à vida e às suas expressões cotidianas”, como nos ensina Luciana Tamagno (1999: 12). Pensemos, então, a escassez de estudos em torno do assunto como decorrência do preconceito. Daí a falta de reconhecimento da existência dessa literatura (seja ela contemporânea ou não). A situação do(a) escritor(a) negro(a) e indígena, por exemplo, não está desapartada da sua escrita. A sua história de vida (autohistória) configura-se como um dos elementos intensificadores na sua crítica-escritura, levando em conta a história de seu povo. Sendo assim, as especificidades da literatura indígena, tanto quanto as particularidades da literatura africana devem ser respeitadas em suas diferenças.
NOTA da ABL: No dia 15 de junho, aconteceu o I Colóquio entre Tradição Oral e Literatura Brasileira, debatendo aspectos relevantes sobre a literatura indígena, estabelecendo o encontro dos escritores de origem nativa e os mais reconhecidos nomes da literatura brasileira. O debate foi no Teatro R. Magalhães Jr. e contou com a presença do Presidente da Academia Brasileira de Letras, Cícero Sandroni, dos Acadêmicos Moacyr Scliar e Alberto da Costa e Silva, Daniel Munduruku (Escritor e Diretor Presidente do Inbrapi), Graça Graúna (Indígena Potiguara e Dra. em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco) e Darlene Taukane (Escritora Indígena Kura-Bakairi e Mestre em Educação). O evento teve entrada gratuita e transmissão ao vivo pelo portal da ABL.
Graça Graúna, Rio de janeiro, 15 de junho de 2009.
NOTA: matéria publicada no Overmundo.
5 comentários:
Graça,
parabéns pelo texto, muito estimulante e traz desafios a serem olhados de mais de perto, com empenho e afinco. Escrevi um texto sobre o seu texto em meu blog CIPSEC:
http://cipsec.blogspot.com/2009/06/vi-encontro-de-escritores-e-artistas.html
É importante divulgar mesmo após o encerramento das atividades, para que a energia continue circulante, acho...
beijos e espero que não se importe.
Cris
Cristiano Melo, meu amigo lindo: você me deixa tão feliz, sabia? Meus parentes indígenas e eu agradecemos sua preciosa atenção a nossa literatura. Pessoas iguais a você queremos sempre ter por perto.Paz em Nanderu, Grauninha
Parabéns à academia, Graça. Você é um prêmio pra eles.
CD - Compulsão Diária : tua palavras me deixam um tanto encabulada...rsrs....grata por você existir. Bjos.
Gracinha, é inadiável e a graça tem surgido sempre, quando é necessário marcar espaço e posição: você havia de estar ai. Você e os demais kybyras, filhos e filhas de Ñanderu!
Depois de você eu não sei mais andar sozinho, aliás, tua vida perpassa a minha!
Beijos,
AR
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