A poesia social em Cesário Verde
Em 25 de fevereiro de 1855 nasceu, em Lisboa,
Cesário Verde. Filho de camponês, Cesário Verde ingressou no Curso Letras da
Universidade de Coimbra, mas não completou seus estudos. Na década de setenta
do séc. XIX, a poesia de Cesário aparece em jornais lisboetas. Por volta de
1885 ele retorna para a casa paterna para tratar da tuberculose, mas
enfraquecido pela doença vem a falecer em 19 de julho de 1887.
Os
estudiosos consideram Cesário “o poeta de Lisboa e da vida rural periférica,
cantadas em sua pequena obra com irretocável lucidez, sensibilidade e beleza” (www.lpm.com.br).
Mas a crítica literária fingiu ignorá-lo, de tal modo que o próprio poeta expôs
seu desabafo: “Literariamente parece que Cesário Verde não existe”.
Apesar do preconceito em
torno da sua genialidade, a poesia de Cesário Verde vence o tempo porque dá
visibilidade as criaturas socialmente invisíveis; sua poesia reclama e ao mesmo
tempo traz aspectos inovadores no fazer poético que situam o poeta
entre os ícones do Modernismo na literatura de Portugal.
Há 130 anos, Cesário Verde veio ao mundo e, apesar dos sofrimentos todos
pelos quais passou, deixou por meio da poesia um olhar (ao mesmo tempo)
generoso e crítico; um olhar voltado para os pobres, aos marginalizados, aos
excluídos. Para homenageá-lo, convido-os a uma boa leitura acerca
do “Sentimento dum ocidental”; especificamente sobre o cotidiano da poesia na
reflexão de Patrícia Vilela, que foi minha aluna no Curso de Letras, na UPE.
Saudações
literárias,
Graça
Graúna
Imagem extraída do Google
Quando
o cotidiano vira poesia (*)
O
Realismo em Portugal foi um momento no qual a literatura passou a retratar a
realidade de forma crua, desvendando os olhos da sociedade. Esse período foi
influenciado pelos novos ideais políticos da época e não poderia se alimentar
apenas de um mundo idealizado. Era preciso uma literatura mais objetiva e
compromissada com a causa social, que pudesse agir como forma de denúncia da
degradação moral que estava sendo vivida. Segundo Moisés (2001, p.167) “(...) a
obra literária passou a ser considerada utensílio, arma de combate, de reforma
e ação social”.
Considerando
que a poesia realista se desdobrou em quatro direções, este trabalho busca analisar
o poema “O sentimento dum Ocidental”, do poeta Cesário Verde, o primeiro escritor
a representar a poesia do cotidiano na estética realista portuguesa e a extrair
poesia de assuntos que eram tidos como não poéticos, como afirma Massaud
Moisés: “(...) poesia do cotidiano, aquela que destrói a idéia de nobreza
artística anterior à elaboração da obra-de-arte e introduz o prosaico no plano
poético, tendo Cesário Verde como único e grande representante. (MOISÉS, 1984,
p. 124-125)
O
poema “O sentimento dum Ocidental” se manifesta como um filme resultado de um
passeio pelas ruas de Lisboa, no qual é feito um relato das imagens encontradas
ao longo da referida cidade. Poderíamos dizer que trata-se de uma fotografia da
realidade, mas o ser poeta não se comporta
como um fotógrafo, pois um escritor assim adjetivado deve agir de forma
impessoal, não tendo autonomia para expor a sua opinião.
Ao contrário,
conduz Cesário Verde a projetar-se nas coisas, no mais prosaico da vida
cotidiana, em busca de apreender a imagem fugaz do mundo em permanente
dinamismo. É a poesia do cotidiano, do atual, do trivial, desobediente a qualquer
escala de nobreza artística. (MOISÉS, 1984, p. 181)
Esse
poema é dividido em quatro partes: I-Ave Marias; II-Noite Fechada; III- Ao gás
e IV-Horas Mortas. A caminhada tem início na parte I da obra. Nesse momento
somos situados no entardecer e o aspecto religioso, que é bastante forte em
Portugal, é evocado; onde especificamente as pessoas de tradição católica se
voltam a um momento de oração.
Na
1ª estrofe o eu lírico nos fala sobre o anoitecer em sua cidade e nos toca com a
entediante experiência de viver em tal lugar. A propósito observemos os versos
seguintes:
Nas nossas ruas,
ao anoitecer,
Há tal
soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras,
o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um
desejo absurdo de sofrer
(MOISÉS, 2006. P. 336)
A sensação de
isolamento é perceptível quando o poeta compara as nossas moradas a gaiolas,
evocando assim a ideia de que, na maioria das vezes, somos pássaros aprisionados
em moldes pré-estabelecidos. O ser poeta se espanta com o aprisionamento de uma
cidade em processo de “cimentalização”, sentindo-se preso num ambiente
sufocante e doentio. A propósito vejamos os versos que seguem:
Semelham-se
a gaiolas, com viveiros,
As
edificações somente emadeiradas:
Como
morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam
de viga em viga os mestres carpinteiros.
(Idem, p. 336)
(Idem, p. 336)
Ainda na parte I, o ser
poeta cita características dos portugueses, tais como: tentar conquistar novas
terras, desbravar novos lugares. Mais a frente o eu lírico evoca as aventuras
vividas por “heróis portugueses” e fala sobre as navegações. Chega até mesmo a
citar a atitude de Camões ao salvar a maior obra épica do povo português: Os
Lusíadas. A propósito, observemos os versos seguintes:
E
evoco, então, as crônicas navais:
Mouros,
baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta
Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram
soberbas naus que eu não verei jamais!
(Idem, p.337)
(Idem, p.337)
Ao contemplar pessoas
partindo rumo a outros países, o eu lírico lamenta não poder partir junto com
elas e deixa vestígios do desenvolvimento indutrial, conforme os versos a
seguir:
Batem
os carros de aluguer, ao fundo,
Levando
à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me
em revista exposições, países:
Madri,
Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
(Idem, p.336)
(Idem, p.336)
Em alguns momentos surgem indícios do
Naturalismo presente na poesia Realista, e por várias vezes contemplamos a
condição na qual os indivíduos ali sobrevivem, conforme os versos seguintes:
Descalças!
Nas descargas de carvão,
Desde
manhã à noite, a borda das fragatas;
E
apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E
o peixe podre gera os focos de infecção!
(Idem, p.337)
(Idem, p.337)
Ao
longo da leitura do poema percebemos que por várias vezes Cesário Verde fala do
mundo feminino, descrevendo diversos tipos de mulheres e os ambientes nos quais
elas vivem/trabalham. São mães, castíssimas esposas, mulheres impuras,
crianças, velhinhas, costureiras, coristas, carvoeiras... Então Cesário adota
uma postura lírica para algo que está diante dos nossos olhos, mas que já se
banalizou, conforme o comentário de Massaud Moisés:
Lirismo dum
repórter, mas dum repórter atraído pela cidade, sensível a todas as suas
pulsações, inclusive as nauseantes, disformes ou repugnantes. Ou, por outro,
lirismo realista, porém não fotográfico nem frio: o poeta emociona-se, e muito,
e é sua emoção perante o real cotidiano que procura transmitir ao leitor.
(MOISÉS, 2010, p. 341)
(MOISÉS, 2010, p. 341)
O poeta nos alerta
quanto a instabilidade da nossa condição social, pois se depara com alguém que
outrora fora seu professor de Latim e agora encontra-se vagando pelas ruas de
Lisboa a pedir esmolas.
Dó
da miséria! ... Compaixão de mim!...
E,
nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me
sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu
velho professor nas aulas de Latim!
(Idem, p. 340)
(Idem, p. 340)
Fica
explícito que o poema “O sentimento dum Ocidental”, de Cesário Verde, mesmo
tendo sido escrito há tantos anos, não perdeu a sua sincronicidade e se faz
atual ante a condição humana. E o que mais importa é que o cotidiano é poético
e a poesia pode ser cotidiana, lembrando que esta deve cumprir a sua missão,
mesmo que não cause deleite, mas que seja capaz de provocar o deslumbre.
Patricia Vilela
(*) Patrícia Vilela das Neves: discente do 5º
período do Curso de Licenciatura em Letras da Universidade de Pernambuco-UPE/Campus Garanhuns. Resenha crítica
apresentada em 25 de outubro de 2012, na disciplina
Literatura Portuguesa II.
Referências
MOISÉS,
Massaud. Presença da literatura
portuguesa: Romantismo, Realismo. 6 ed. São Paulo, SP: Difel, 1984.
______.
A literatura portuguesa. 31 ed. São
Paulo: Cultrix, 2001.
______.
A literatura portuguesa através dos
textos. 32 ed. São Paulo: Cultrix, 2010.
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