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06 maio 2015

Quando o cotidiano vira poesia




A poesia social em Cesário Verde


 Em 25 de fevereiro de 1855 nasceu, em Lisboa, Cesário Verde. Filho de camponês, Cesário Verde ingressou no Curso Letras da Universidade de Coimbra, mas não completou seus estudos. Na década de setenta do séc. XIX, a poesia de Cesário aparece em jornais lisboetas. Por volta de 1885 ele retorna para a casa paterna para tratar da tuberculose, mas enfraquecido pela doença vem a falecer em 19 de julho de 1887.
Os estudiosos consideram Cesário “o poeta de Lisboa e da vida rural periférica, cantadas em sua pequena obra com irretocável lucidez, sensibilidade e beleza” (www.lpm.com.br). Mas a crítica literária fingiu ignorá-lo, de tal modo que o próprio poeta expôs seu desabafo: “Literariamen­te parece que Cesário Verde não existe”. 
           Apesar do preconceito em torno da sua genialidade, a poesia de Cesário Verde vence o tempo porque dá visibilidade as criaturas socialmente invisíveis; sua poesia reclama e ao mesmo tempo traz aspectos inovadores no fazer poético que situam o poeta entre os ícones  do Modernismo na literatura de Portugal.
          Há 130 anos, Cesário Verde veio ao mundo e, apesar dos sofrimentos todos pelos quais passou, deixou por meio da poesia um olhar (ao mesmo tempo) generoso e crítico; um olhar voltado para os pobres, aos marginalizados, aos excluídos.   Para homenageá-lo, convido-os a uma boa leitura acerca do “Sentimento dum ocidental”; especificamente sobre o cotidiano da poesia na reflexão de Patrícia Vilela, que foi minha aluna no Curso de Letras, na UPE.
Saudações literárias,

Graça Graúna
        


                                                      Imagem extraída do Google



Quando o cotidiano vira poesia (*)


O Realismo em Portugal foi um momento no qual a literatura passou a retratar a realidade de forma crua, desvendando os olhos da sociedade. Esse período foi influenciado pelos novos ideais políticos da época e não poderia se alimentar apenas de um mundo idealizado. Era preciso uma literatura mais objetiva e compromissada com a causa social, que pudesse agir como forma de denúncia da degradação moral que estava sendo vivida. Segundo Moisés (2001, p.167) “(...) a obra literária passou a ser considerada utensílio, arma de combate, de reforma e ação social”.
Considerando que a poesia realista se desdobrou em quatro direções, este trabalho busca analisar o poema “O sentimento dum Ocidental”, do poeta Cesário Verde, o primeiro escritor a representar a poesia do cotidiano na estética realista portuguesa e a extrair poesia de assuntos que eram tidos como não poéticos, como afirma Massaud Moisés: “(...) poesia do cotidiano, aquela que destrói a idéia de nobreza artística anterior à elaboração da obra-de-arte e introduz o prosaico no plano poético, tendo Cesário Verde como único e grande representante. (MOISÉS, 1984, p. 124-125)
O poema “O sentimento dum Ocidental” se manifesta como um filme resultado de um passeio pelas ruas de Lisboa, no qual é feito um relato das imagens encontradas ao longo da referida cidade. Poderíamos dizer que trata-se de uma fotografia da realidade, mas o ser poeta não se comporta  como um fotógrafo, pois um escritor assim adjetivado deve agir de forma impessoal, não tendo autonomia para expor a sua opinião.

Ao contrário, conduz Cesário Verde a projetar-se nas coisas, no mais prosaico da vida cotidiana, em busca de apreender a imagem fugaz do mundo em permanente dinamismo. É a poesia do cotidiano, do atual, do trivial, desobediente a qualquer escala de nobreza artística. (MOISÉS, 1984, p. 181)

Esse poema é dividido em quatro partes: I-Ave Marias; II-Noite Fechada; III- Ao gás e IV-Horas Mortas. A caminhada tem início na parte I da obra. Nesse momento somos situados no entardecer e o aspecto religioso, que é bastante forte em Portugal, é evocado; onde especificamente as pessoas de tradição católica se voltam a um momento de oração.
Na 1ª estrofe o eu lírico nos fala sobre o anoitecer em sua cidade e nos toca com a entediante experiência de viver em tal lugar. A propósito observemos os versos seguintes:

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer
            (MOISÉS,  2006. P. 336)


A sensação de isolamento é perceptível quando o poeta compara as nossas moradas a gaiolas, evocando assim a ideia de que, na maioria das vezes, somos pássaros aprisionados em moldes pré-estabelecidos. O ser poeta se espanta com o aprisionamento de uma cidade em processo de “cimentalização”, sentindo-se preso num ambiente sufocante e doentio. A propósito vejamos os versos que seguem:
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros. 
                 (Idem, p. 336)

Ainda na parte I, o ser poeta cita características dos portugueses, tais como: tentar conquistar novas terras, desbravar novos lugares. Mais a frente o eu lírico evoca as aventuras vividas por “heróis portugueses” e fala sobre as navegações. Chega até mesmo a citar a atitude de Camões ao salvar a maior obra épica do povo português: Os Lusíadas. A propósito, observemos os versos seguintes:

E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais! 
                (Idem, p.337)

Ao contemplar pessoas partindo rumo a outros países, o eu lírico lamenta não poder partir junto com elas e deixa vestígios do desenvolvimento indutrial, conforme os versos a seguir:
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! 
            (Idem, p.336)

Em alguns momentos surgem indícios do Naturalismo presente na poesia Realista, e por várias vezes contemplamos a condição na qual os indivíduos ali sobrevivem, conforme os versos seguintes:

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a borda das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção! 
                  (Idem, p.337)

Ao longo da leitura do poema percebemos que por várias vezes Cesário Verde fala do mundo feminino, descrevendo diversos tipos de mulheres e os ambientes nos quais elas vivem/trabalham. São mães, castíssimas esposas, mulheres impuras, crianças, velhinhas, costureiras, coristas, carvoeiras... Então Cesário adota uma postura lírica para algo que está diante dos nossos olhos, mas que já se banalizou, conforme o comentário de Massaud Moisés:

Lirismo dum repórter, mas dum repórter atraído pela cidade, sensível a todas as suas pulsações, inclusive as nauseantes, disformes ou repugnantes. Ou, por outro, lirismo realista, porém não fotográfico nem frio: o poeta emociona-se, e muito, e é sua emoção perante o real cotidiano que procura transmitir ao leitor. 
(MOISÉS, 2010, p. 341)

O poeta nos alerta quanto a instabilidade da nossa condição social, pois se depara com alguém que outrora fora seu professor de Latim e agora encontra-se vagando pelas ruas de Lisboa a pedir esmolas.
Dó da miséria! ... Compaixão de mim!...
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!  
                             (Idem, p. 340)

Fica explícito que o poema “O sentimento dum Ocidental”, de Cesário Verde, mesmo tendo sido escrito há tantos anos, não perdeu a sua sincronicidade e se faz atual ante a condição humana. E o que mais importa é que o cotidiano é poético e a poesia pode ser cotidiana, lembrando que esta deve cumprir a sua missão, mesmo que não cause deleite, mas que seja capaz de provocar o deslumbre.

Patricia Vilela

(*) Patrícia Vilela das Neves: discente do 5º período do Curso de Licenciatura em Letras da Universidade de Pernambuco-UPE/Campus Garanhuns. Resenha crítica apresentada em 25 de outubro de 2012, na disciplina Literatura Portuguesa II.

Referências
MOISÉS, Massaud. Presença da literatura portuguesa: Romantismo, Realismo. 6 ed. São Paulo, SP: Difel, 1984.
______. A literatura portuguesa. 31 ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
______. A literatura portuguesa através dos textos. 32 ed. São Paulo: Cultrix, 2010.