A arte literária dos
indígenas
Por Rachel Bertol | Para o
Valor, do Rio
Daniel Munduruku, autor de 43 títulos: "Sou escritor por
vingança"
Escritor indígena? Literatura indígena? É comum ler
reportagens sobre índios no Dia do Índio e, embora os brasileiros já comecem
aos poucos a se acostumar com a atuação dos novos intelectuais indígenas -
militantes das próprias causas -, pouco ainda se ouve falar dos
"escritores indígenas". E muita gente também estranha: literatura
indígena? "Sou escritor por vingança. Como fui obrigado a ir para o
colégio, aprendi a escrever e me tornei escritor", diz Daniel Munduruku,
autor de 43 títulos (a maior parte para crianças), que terá este como um ano de
comemorações.
O Encontro de Escritores e Artistas Indígenas, do
qual foi um dos criadores com o apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (FNLIJ), está celebrando uma década. A edição comemorativa será
realizada em junho, no Salão do Livro para Crianças e Jovens, no Rio. Dessa
edição vão participar 25 indígenas e será lançada uma antologia com textos
inéditos de 14 escritores para o público adulto (Munduruku vai escrever uma
crônica sobre o espanto das pessoas quando veem o índio usando paletó e cocar).
Além dele, participam, entre outros, Cristino Wapichana, Olívio Jekupé, Graça
Graúna, Manuel Moura Tucano, Rony Wasiry, Yaguarê Yamã - este último teve
títulos selecionados para o catálogo internacional da FNLIJ de 2013,
apresentado no mês passado na Feira do Livro para Crianças de Bolonha (a maior
parte dos autores indígenas atua no segmento de livros infantis). No encontro,
também se planeja uma exposição e serão realizadas oficinas artísticas com educadores,
além das atividades com crianças.
Mas nessa edição haverá outra importante
comemoração para Munduruku: os dez anos do lançamento de seu livro "Meu Vô
Apolinário" (Studio Nobel), que conta a dificuldade de uma criança
indígena de aceitar sua condição. O livro ganhou o Prêmio de Tolerância da ONU
e foi decisivo para estimular outros indígenas a escrever.
No entanto, se o movimento dos autores indígenas é
novo no Brasil - um movimento do século XXI -, Munduruku diz que não são
autores novos: as histórias de que tratam remetem a mitos de um tempo em que
gente e bicho viviam como homem e mulher, conversavam de igual para igual. Para
aceitar esse movimento como plenamente literário, torna-se necessário,
portanto, aceitar que essas histórias de outros tempos - transmitidas em cantos
e narrativas orais, muitas colhidas por antropólogos e viajantes ou ouvidas
pelos indígenas diretamente em suas aldeias - também sejam reconhecidas, e
conhecidas, como expressões literárias.
Sérgio Cohn, editor da Azougue, acaba de dar um
importante passo nesse sentido, com o lançamento de "Poesia.br",
caixa com dez livros no qual faz uma coletânea de poetas brasileiros da
contemporaneidade até os tempos da colônia e mais além, com uma seleta que
intitulou "Cantos Ameríndios". São cantos de diferentes povos
indígenas - bororo, caxinauá, marubo, embiá-guarani, maxacali - publicados apenas
em português sem notas de rodapé ou explicações acadêmicas. Para realizar o
trabalho, contou com a colaboração de pesquisadores acadêmicos.
Na semana passada, no lançamento do
"Poesia.br" em São Paulo, a leitura dos cantos ameríndios por uma
atriz foi o momento que mais emocionou o público. "Acho que tem um
interesse e eu tenho a impressão de que as pessoas estranhavam muito mais
antigamente", conta o editor, que, mesmo assim, ainda sente certa
resistência. "Eu quero que esses cantos tenham validade por si, assim como
um poema de Gonçalves Dias, João Cabral ou Drummond", afirma. Por isso, a
opção de não colocar explicações, que considera desnecessárias quando o
objetivo é despertar o encantamento do leitor.
Outro lançamento que reforça essa tendência é
"La Poésie du Brésil" (Éditions Chandeigne), publicado no fim do ano
na França. Organizada pelo franco-brasileiro Max de Carvalho, a antologia é das
mais completas já lançadas no exterior com a poesia brasileira e começa com o
capítulo "Les Immémoriaux" (Os imemoriais), reunindo narrativas
míticas, cantos de amor e cantos xamânicos de diferentes povos indígenas.
"Quem ainda recusa à poesia indígena o status
de literatura deveria se perguntar o que entende por uma e outra. A poesia dos
ameríndios da América do Norte, oral, dançada, xamânica, influenciou
diretamente os maiores poetas americanos da segunda metade do século XX, de Bob
Creeley a Charles Olson, passando por Zukowski e sobretudo Jerome Rothenberg.
Introduzir os cantos imemoriais na poesia nacional é uma subversão necessária
em relação a uma visão esclerosada", defende Carvalho.
Cohn lembra na introdução de "Cantos
Ameríndios" que os escritos indígenas tocam em questões importantes para a
poesia contemporânea, como "o esboroamento da autoria e das fronteiras das
expressões artísticas" e "a presença da performance".
Os textos indígenas, porém, ainda provocam bastante
perplexidade, haja vista a reação ao livro "Meu Destino É Ser Onça"
(Record), em que o escritor Alberto Mussa reconstitui mitos tupinambás para
"incorporar a epopeia tupinambá à nossa cultura literária". O livro
não é considerado antropológico, por sua liberdade criativa, mas causa
desconfiança nos estudos literários. Em tese defendida neste ano sobre sua
obra, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
a obra provocou controvérsia.
"O
orientador disse que era um estudo da área de antropologia. Mas ele está certo,
desde que tenha considerado o critério de ficção. Como não é ficção do autor,
ele preferiu excluir o livro de uma dissertação sobre a obra ficcional. Eu só
não concordaria se ele tivesse dito que narrativa mítica não é
literatura", diz Mussa, para quem a narrativa tupinambá, no entanto, como
defende no livro, deveria "figurar em todos os cânones da literatura brasileira,
fosse qual fosse a definição desse conceito".
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