A literatura indígena é um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas ao longo da história há mais de 500 anos. Enraizada nas origens, esse instrumento de luta e sobrevivência vem se preservando na autohistória de escritores(as) indígenas e descendentes e na recepção de um público diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones.
A voz do texto mostra que os direitos dos povos indígenas de expressar seu amor à terra, de viver seus costumes, sua organização social, suas línguas e de manifestar suas crenças nunca foram considerados de fato e que apesar da intromissão dos valores dominantes, o jeito de ser e de viver dos povos indígenas e seus descendentes vence o tempo. A tradição literária (oral, escrita, individual, coletiva) é uma prova dessa sobrevivência. Essa tradição é abordada a partir de um conjunto de textos literários indígenas de autoria individual de língua portuguesa, em que se manifesta a literatura-assinatura de milhões de povos excluídos.
A presente reflexão remete as minhas investigações no campo das chamadas literaturas periféricas e dos estudos culturais em Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil (tese de Doutorado em Letras, que eu defendi em março de 2003, na UFPE). O referido estudo propõe uma leitura das diferenças em obras de autoria indígena que foram publicadas no período de 2000 a 2002. : Nessa perspectiva, temos:
• a poesia indígena em Metade cara, metade máscara, de Eliane Potiguara (Ed. Palavra de Índio). Eliane fundou o GRUMIN- atual Rede de Comunicação Indígena sobre Gênero e Direitos;
• a “contação de histórias” em Puratig: o remo sagrado, de Yaguarê Yamã (Ed. Peirópolis, 2001). Yamã pertence ao povo Sateré Mawé, isto é, “filhos do guaraná”. Na língua Mawé, “poratim” significa remo, arma, memória;
• O saci verdadeiro - de Olívio Jekupé (Ed. Universidade Estadual de Londrina, 2000) - traz um prefácio de Betty Mindlin. Descendente guarani, Jekupé vive na Aldeia Krukutu em São Paulo e tem outros livros publicados. As dificuldades econômicas impediram-no de concluir o Curso de Filosofia na USP;
• O saci verdadeiro - de Olívio Jekupé (Ed. Universidade Estadual de Londrina, 2000) - traz um prefácio de Betty Mindlin. Descendente guarani, Jekupé vive na Aldeia Krukutu em São Paulo e tem outros livros publicados. As dificuldades econômicas impediram-no de concluir o Curso de Filosofia na USP;
• Irakisu: o menino criador, de Renê Kithãulu (Ed. Peirópolis, 2002). Esse autor pertence ao povo Waikutesu, da região Nambikwara, em Mato Grosso. Trabalha com engenharia de casas indígenas em São Paulo, onde mora há alguns anos;
• Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da memória, de Daniel Munduruku (Ed. Studio Nobel, 2001). Esse livro foi premiado pela UNESCO em abril de 2003. Em julho desse mesmo ano, o autor também recebeu (pelo conjunto de sua obra) o prêmio Erico Vanucci no 55º Congresso da SBPC. Munduruku é idealizador da Editora Palavra de Índio.
Pôr em relevo os acontecimentos que a mídia, em geral, não conta é uma das características da literatura indígena contemporânea. Em algumas das obras é frequente uma incursão na história do movimento indígena no Brasil e em outros países e reflexões também relacionadas ao papel da Campanha da Fraternidade da CNBB, a exemplo da Semana dos Povos Indígenas de 2002 inspirada no mito guarani – “em busca da terra sem males”. Gerando a sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura Nacional.
Como distinguir as especificidades da literatura indígena? Como reconhecer a existência dessa literatura, em meio a tantos “apagamentos”? Quais os pontos de confluência entre os diferentes saberes dos povos indígenas no Brasil ou em Quebec, no Paraguai ou no México, na Guatemala ou no Chile, no Peru ou na Bolívia, levando em conta o processo de transculturação? Esse questionamento é um convite para repensar “a utopia em seu sentido antropológico como toda possibilidade de sonhar um mundo melhor, todo projeto coletivo, toda idéia que dê sentido à vida e às suas expressões cotidianas”, como observou a antropóloga Luciana Tamagno, no Jornal Porantim (CIMI), em 1999.
Esse convite deve estender-se também aos teóricos da literatura, levando em conta que a literatura indígena ainda é pouco estudada em seu aspecto contemporâneo, particularmente em seus aspectos fronteiriços. Ao contrário do que se pensa, os ventos da aldeia também percorrem o tempo e o espaço compartilhado na Internet, em oficinas literárias, em palestras e em sala de aula nas cidades grandes. Basta um lugar e um olhar receptivos, um leitor atento para o ato de narrar e/ou declamar se expandir igual a “seiva que percorre o corpo das árvores”, conforme intuímos em uma passagem da carta do Chefe Seatle frequentemente citada por escritores(as) indígenas no Brasil.
A Declaração Universal dos Direitos Indígenas considera que todos os povos originários de cada nação com língua, cultura, tradição e espiritualidade diferenciadas da sociedade em que vivem são considerados indígenas, incluindo (entre as manifestações artísticas) a sua literatura (oral ou escrita). Isso faz ver que a escassez de estudos em torno do assunto é decorrência também do preconceito; que a literatura indígena no Brasil continua sendo negada, da mesma forma com que a situação dos seus escritores e suas escritoras continua sendo desrespeitada. A situação não é diferente com relação aos escritores descendentes indígenas e afro-descendentes (Ademario Ribeiro, Carolina de Jesus, Solano Trindade e Gonçalves Dias entre outros). Essa questão ainda não se livrou do prisma etnocentrista.
Desse modo, considero oportuno ressaltar as boas palavras do poeta e crítico Antonio Risério (1993). Em seu livro Textos e tribos, ele nos convida (sob o signo do poeta Sousândrade) a uma leitura da cumplicidade da prosa e da poesia que brotam sem cessar, nos cantos xamânicos e na oralidade, entre outros conhecimentos tradicionais.
Graça Graúna. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Recife: UFPE (trecho da tese de Doutorado, defendida em 2003).
Nota: artigo publicado no Overmundo com 146 votos.
Olá, Graça, mesmo a algumas milhas, sempre venho aqui.
ResponderExcluirEsterei amanhã ou depois postando no www.agendagaranhuns.blogspot.com o II Fórum de DH.
Muitas saudades...
Obrigada, meu poetamigo Wagner. Paz e bem pra você.Volte sempre.
ResponderExcluirGraça,
ResponderExcluirMinha querida que texto pertinente. Rico em informações e com a sua maneira clara de expressar o tema, já falei em outras ocasiões sobre o mesmo tema e acho que sempre devemos voltar quantas vezes for necessária para se diminuir as mazelas existentes na falta de informação e na propagação da comunicação em massa manipulada da mídia vigente. Em alguns estudos se aponta que há diversas línguas sendo extintas, e a língua é parte essencial de uma Cultura. Há de se cuidar de mais perto, no meu caso fiz e faço um pequeno esforço com os irmãos Yanomami. Força minha querida.
Cris
Difícil ficarmos indiferentes a este tema.
ResponderExcluirAlém do mais, exposto de forma tão brilhante e apaixonada.
Isto termina nos despertando algumas inevitáveis reflexões, o que já justificaria plenamente a sua existência.
O fato é que, quando os portugueses chegaram aqui não existia uma nação, mas várias nações neste contimente(com suas línguas e culturas próprias). O Brasil só se formou mesmo através da miscigenação das nossas três raças constituintes ancestrais (o branco europeu, o negro africano e o vermelho indígena nativo).
Localizar uma cultura e/ou uma raça brasileira pura é falarmos dos mestiços e seus costumes, crenças e culturas que são a maioria da população (se é que existe alguma raça pura no país).
Mas, o fato é que os nativos, ou melhor, os indígenas foi o único povo constituinte da raça brasileira que foi confinado em guetos, digamos assim. As reservas não passam de guetos onde terminamos segregando-os. Afinal, boa parte destas se não perdeu completamente sua herança cultural, assimilando hábitos de nossa sociedde consumista, ou se aculturou completamente. Vivem marginalizados (em algumas reservas, por exemplo, o alcoolismo é um grande problema presente, gerando todo tipo de desajuste).
Assim, quando sabemos das resistências e lutas que existem para preservar estas nações e suas culturas, não deixamos de nos comover e, principalmente, de sermos solidários a qualquer ação que sustente esta resistência e luta.
Pouco efetivamente está sendo feito, seja no sentido concreto, quanto intelectual.
O que nos envergonha (e isto, intelectuais e artistas militantes como uma Graça Graúna insiste) é mostrar a nossa alienação.
E, o importante (e fundamental) é que este tipo de engajamento literário descortina para todos nós
uma realidade essencial em nossa formação cultural.
Diria que, além da enorme admiração que estudos como estes despertam em nós, nos sentimos envergonhados diante da nossa ignorância.
Entendemos de muitas coisas, menos de nossa própria identidade.
Abraços
Repito o que escrevi no Overmundo para aqueles que por lá não transitam:
ResponderExcluirA cultura de um povo só pode ser reconhecida quando é formada pelas manifestações de todos os setores de sua sociedade. Infelizmente, à cada dia, fica mais perceptível o separatismo entre as "tribos" dos nossos brasis.
Mas, felizmente, existem pessoas como você que vêm em socorro da língua e seus manifestos, venham de quem vier.
É a velha história: "Brasil, mostra a sua cara!"
Parabéns pela luta!
Meu querido Beto Mathos: você disse bem - Brasil/Brasis.....mas vamos, em frente, mostar a nossa cara de potiguara, munduruku, guarani, xavante, pankararu, fulni-ô, pataxó, tremembé, tuxá, xukurú, kamiwá, kulina, Sateré...e quem mais vier. Eita!!!Grata pela leitura e paz em Ñanderu. Grauninha
ResponderExcluirHideraldo, meu querido poeta e amigo: mais uma vez meu coração pulsa de alegria por encontrá-lo aqui. Sei que você faz do seu tempo um tremendo corre-corre (também sou assim, estou a cem) e mesmo assim arrecadou um tempinho pra registrar sua afeição por esse tema - a literatura indígena. Quero dizer, mais uma vez, que levarei para os meus parentes indígenas as suas impressões em torno das nossas inquietações literárias. Grata mesmo, meu amigo-poeta. É bom tervocê por perto e digo mais, estou pedindo a Ñanderu sabedoria para escrever a respeito do seu Humano Canto. Já estou burilando as ideias. Grata por você existir. Bjos de luz, Grauninha
ResponderExcluirCristiano, meu poetamigo do cerrado: gosto demais mesmo quando você aparece e deixa rastros da sua alma para me guiar nos momentos difíceis. Sério mesmo. Você é uma das pessoas mais lindas do planeta. É meu irmão querido que acompanha e torce pela nossa luta indígena. Grata por existir, meu querido. Paz em Ñanderu, Grauninha
ResponderExcluirQue trabalho bacana! Muito bom mesmo, parabéns!
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ResponderExcluir"escolho a vivência
ResponderExcluirantes da leitura, que escolho
antes da escrita. Mas, ante a isso tudo,
só mesmo a literatura." (L.Jardim)
Poetamigo L.Jardim:gratissima pelo comentario ao meu artigo sobre literatura indígena. Grata também por visitar meu humilde blog e parabens por sua poesia cheia de vida. Gostei dos seus versos. Paz em Ñanderu, Grauninha
Graúna, a tua força, o teu amor e abnegação são vertidos no cotidiano de tantas lutas e lugares! Tu nos leva para tantos lados: academias, oficinas de direitos humanos e leituras poético-dramáticas. Tuas teses são tramas, tessituras, teias em que se enlaçam os cipós de AmerÍndia, de Mama África, Pachamama, Abya Yala e nos confins da Terra Inteira!
ResponderExcluirTu amiga, hermana, quixotesca - metes broncas, doa em quem doer e tu nos leva, sempre a cada dia e noite!
Viva o vento que te leva e assobia música de Nhanderu Eté!
Oh Pai Verdadeiro, dai paz, força, carinho, prosperidade a esta moça, doutora, precessora de nóis tudo, amém!!!
Ademario Ribeiro
AR = Ademario Ribeiro, quer dizer tambem "ar que respiro".Então é isso, meu amigo irmão de luta; a tua presença aqui no meu humilde blog só me encanta e me enche de coragem pra continuar na luta. Grata pelo comentário. Paz em Ñanderu, Grauninha
ResponderExcluirQuerida Graça,
ResponderExcluirPercebo que suas colocações são pertinentes demais e estão me ajudando bastante na minha graduação, visto que me colocaram em contato com uma temática diferente, surpreendente.
Gostaria apenas que me explicasse uma coisa: na sua obra (de uma forma geral), qual a temática predominante referente ao povo indígena?
Muitas perguntas me rodeiam nesse momento. Mas, acredito que preciso somente dessa resposta para, então, tecer os fios e formar uma opinião particular para os meus questionamentos.
Um grande abraço.