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09 maio 2020

Saberes indígenas: da prosa ao verso e outras artes (1ª parte)



Graça Graúna, potiguara/RN
(Escritora indígena)

Na ânsia de pegar estrada pelo Brasil, com o intuito de trabalhar a literatura indígena; escrevi uma carta a professores/as indígenas e não indígenas, propondo a realização de Rodas de Conversas e Oficinas Literárias. O apoio foi irrestrito, de maneira que o nosso planejamento mostrou a possibilidade de realizar quatro viagens no primeiro semestre e mais quatro viagens no segundo semestre de 2020; levando na bagagem a esperança de que a literatura indígena pode também melhorar o mundo. À medida que o calendário de viagens foi se formando, mais convites apareceram; totalizando onze viagens que eu faria pelo Brasil.
Tudo estava bem encaminhado, quando fomos surpreendidos pelo Covid-19. Entramos em quarentena, atentos às sérias recomendações de “ficar em casa”, pois veio a pandemia com toda força; vitimando milhares e milhares de pessoas no mundo. Os povos originários estão entre os mais vulneráveis. E é imensurável a preocupação dos filhos da terra, diante também de outra grande ameaça que é a constante invasão de posseiros em territórios indígenas; como se não bastasse a Democracia andar ameaçada em nosso país.  
Apesar do isolamento social, o Projeto “Saberes indígenas: da prosa ao verso e outras artes” (que ficara para depois) ganhou uma roupagem diferente: agora, a meta é alcançar por meio de Blogs, Whatsapp, E-mails e outras redes sociais os parentes, as comunidades, os alunos/as e professores/as indígenas e não indígenas para trocar ideias, tirar dúvidas, conversar, estudar, pesquisar, dialogar sobre literatura indígena.
No “Caderno do tempo”, elaborado por educadores/as indígenas, junto ao Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF, 2006, p. 25), os saberes do povo Atikum estão atrelados ao tempo que determina cada ação para ser realizada; tempo de organizar e realizar reuniões e “tratar de assuntos relacionados à toda comunidade, desejos, problemas, necessidades ligadas à agricultura [...] e à escola para o fortalecimento e desenvolvimento do nosso povo”.
 Ao refletir a importância do tempo para nós indígenas, retomei o contato com Jeane:  presidente da Associação Indígena do Poço da Pedra (AIPAPP) e uma das lideranças do povo Atikum que vive no município de Salgueiro/PE. 

Jeane Atikum

A parente Jeane aceitou o meu convite para fazer parte da consultoria do referido projeto. Recentemente, ela chamou a professora Graça Atikum, que é também liderança, para dialogarmos sobre literatura e ensino nas Escolas Indígenas. 
Graça Atikum

Nesta perspectiva, seguem as perguntas da parente Graça Atikum e as minhas respostas sobre uma arte que muitos desconhecem: a literatura indígena. Em tempo, espero que estas reflexões se transformem em convite para mais uma roda de conversa:


Graça Graúna


1) O que é literatura indígena e quais as principais características?
O conceito de literatura é amplo. Entretanto, no que se refere à literatura indígena, podemos dizer que significa um dos instrumentos que dispomos para refletir acerca das tragédias cometidas pelos colonizadores contra os povos indígenas; a nossa literatura é também um instrumento de paz, a fim de cantarmos a esperança de que dias melhores virão para os povos indígenas no Brasil e em outras partes do mundo.
Sobre as características dessa literatura é possível observar, entre outros aspectos:   um conjunto de vozes de autores/as indígenas; os autores/as procuram testemunhar a sua vivência e transmitir “de memória” as histórias contadas pelos parentes mais velhos, embora muitas vezes se sintam estranhos na própria terra; um estranho aos olhos dos não indígenas.

2) Na sua opinião, a literatura indígena vem ocupando o seu espaço de direito na sociedade ou ainda está na invisibilidade?
Aos poucos, a literatura indígena está saindo da invisibilidade, mas é notório o preconceito que existe em torno da poesia e da narrativa dos povos originários; basta folhear os chamados manuais literários que circulam no meio acadêmico, onde sequer os/as autores/as indígenas são mencionados/as. Porém, um dos caminhos para quebrar essa invisibilidade é a divulgação; seja de boca em boca na aldeia ou na cidade grande; é importante divulgar essa literatura por meio de redes sociais, em eventos literários, em rodas de conversa e em seminários, de maneira que os leitores tenham a oportunidade de conhecer mais de perto a nossa história de resistência.

3) Ainda nos deparamos com livros que não tratam da verdadeira história dos povos indígenas. Que autores indígenas contemporâneos podem contribuir, por meio de suas obras, para o estudante indígena repensar a história do seu povo?
Entre os/as autores/as que em suas reflexões discutem o papel do indígena hoje, cabe sublinhar o nome de Ailton Krenak, Bruno Kaingang, Edson Kayapó, Álvaro Tukano, Gersem Baniwa, Daniel Munduruku, Darlene Taukane, Naine Terena, Márcia Kambeba e Rita Gomes do Nasimento entre outros que fazem parte do grande número de pensadores/as, escritores/as e lideranças indígenas que trabalham em prol do reconhecimento dos saberes dos povos originários. Para saber mais, está disponível na Internet a obra coletiva "Educação em rede: culturas indígenas, diversidade e educação", Vol. 7, que o Sesc publicou em 2019.


4) O que devemos ensinar na Educação Infantil, na área da literatura, tendo em vista que essa modalidade de ensino é considerada o primeiro pilar para as crianças tomarem gosto pela leitura?
Atualmente, as livrarias vêm alimentando suas prateleiras com livros de autoria indígena, em geral livros destinados ao chamado público infantil; o que, de certa forma, cria o rótulo de que os autores e as autores indígenas escrevem apenas para esse público; o que não é verdade.  Ocorre que o mercado editorial vê na temática indígena um gancho para alimentar também as narrativas de autores não indígenas e que geralmente tratam o indígena como um simples elemento de uma paisagem romantizada e sem protagonismo. Um agravante é o pouco ou quase nenhum investimento do Estado em obras de autoria indígena; contribuindo assim, para que a sociedade dominante continue vendo no indígena mais um elemento do folclore. No meu entender, o que deve ser considerado como pilar na educação escolar indígena é o que herdamos dos nossos ancestrais; dos nossos pais, avós e lideranças; pois é levando na alma esses saberes que tornamos a Escola Indígena e nós mesmo, mais fortes.

5) Qual a diferença entre as histórias de tradição oral indígena e as histórias de “trancoso”?
O termo “trancoso” tem origem europeia, mais precisamente em Portugal, onde viveu Gonçalo Fernandes Trancoso: um contista do século XVI. Essa observação nos autoriza a dizer que as narrativas indígenas têm vida própria, isto é, não devem ser incluídas no gênero “contos de trancoso”; considerando o fato de que a literatura indígena, a começar por sua tradição oral, existe antes da invasão dos colonizadores no Brasil. Outro aspecto a ser levado em consideração é que, há muito, a expressão “história de trancoso” significa “história de mentira, irreal”. De tal forma, esta definição não pode retratar a memória dos povos originários que, em suas narrativas, traduzem com elementos simbólicos ou concretos o que é real em seu conhecimento ancestral.

6) No Ensino Médio, a maioria dos jovens alunos não se interessa muito por literatura. Como reverter esse quadro e tornar a aula mais atrativa?
Recordo, aqui, o pensamento do indigenista Bartomeu Meliá: um estudioso da cultura e da história indígena. Ele costumava dizer que “a ação pedagógica para a alteridade não é uma descoberta feita pela sociedade ocidental [...] para oferecer aos povos indígenas, muito pelo contrário: é o que os povos indígenas ainda podem oferecer à sociedade nacional” (Cf. Graúna, em: Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil, 2013, p. 93). Creio que, se os jovens (indígenas ou não indígenas) tiverem oportunidade de ler textos com os quais se identifiquem; se entenderem o que significa uma relação de interação e dependência com outro; se tiverem a chance de expor sua visão de mundo em casa ou na sala de aula, certamente passarão a gostar de literatura.

7) No Romantismo, alguns autores tratavam o índio como herói. O indianismo, por exemplo, foi destaque nas obras de José de Alencar. No seu ponto de vista, como os indígenas são vistos na atualidade?
No Abril Indígena de 1999, escrevi um artigo que o jornal Porantim publicou, em julho do mesmo ano. Trata-se do artigo “Um flagrante do marginalizado na literatura brasileira”, no qual abordo a influência e a representação do indígena na literatura nacional. Falo dos discursos equivocados a respeito dos povos indígenas nos textos dos padres jesuítas, na poesia do Arcadismo de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, e nos romances de Alencar, entre outros românticos; em que o índio é visto superficialmente em sua identificação étnica. Sempre marginalizado. Nesses moldes, a literatura brasileira tem se revelado mais excludente do que se caracterizado pela convivência solidária, na abordagem de temas relacionados aos povos indígenas no Brasil.

8) Na escola Estadual Indígena José Pedro Pereira, do povo Atikum (Salgueiro/PE), os estudantes do 3° ano do Ensino Médio são convidados a elaborar um TCCI (Trabalho de Conclusão de Curso Indígena); pois a pesquisa científica requer leituras bibliográficas; de maneira que seja apresentada, posteriormente, a uma banca examinadora na Escola. Diante disso, gostaria que a Senhora indicasse alguma bibliografia para eles enriquecerem os trabalhos de TCCI.
A resposta para esta questão vai ao encontro dos nomes de autores e autoras que sugeri na terceira pergunta. Os TCCs como o próprio nome sugere, exigem tempo e amor à leitura; assim como sugere o jeito de ser e de viver o tempo, na visão do povo Atikun; pois há tempo de brincar com badoque, pião, boneca de milho... tempo de cuidar da roça, de dançar o Toré e passar essa ciência aos mais novos.

9) Qual foi a sua inspiração para seguir o caminho da literatura?
Desde cedo, tomei gosto pelos livros; aprendi com meus pais e minha avó materna (potiguara/RN) a ler o mundo. Foi na Universidade, que eu tive a oportunidade de ver e ouvir o Mestre Paulo Freire. A defesa que ele sempre fez da “leitura do mundo” foi e continua sendo uma das motivações para seguir o caminho do constante exercício de escrita. Sempre gostei de literatura, principalmente o fazer poético que, no meu entender, pode melhorar o mundo.