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Meliá e a terra da
liberdade de todos os homens
O antropólogo jesuíta Bartomeu Meliá,
aos 87anos, foi ao encontro de Ñanderu, no dia 6 de dezembro de 2019, em Assunção,
Paraguai. Sua convivência com o povo Guarani ao longo de 50 anos traz um legado
de amor à vida e respeito ao outro, como sugere a entrevista que segue;
publicada na Revista Unisnos, em 31 de maio de 2010. Ao compartilhar a
entrevista do padre Meliá para a Revista Unisinos, expressamos nosso respeito e
admiração ao pesquisador que também caminhou com os Guarani em busca de uma terra
sem opressão.
Saudações indígenas,
Graça Graúna (descendente potiguara/RN)
“A história de um guarani é
a história de suas palavras”
Fonte: Patricia Fachin | Tradução de Moisés
Sbardelotto (Revista Unisinos)
Segundo
Bartomeu Melià, a palavra representa tudo na vida dos guarani e é por meio dela
que eles estabelecem uma educação comunitária, que está a serviço de todos
O pesquisador Bartomeu Melià convive com os
guarani desde 1969 e os define como “grandes caminhadores”. Na entrevista que
segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, ele conta como era a
rotina ao lado desse povo. “Passávamos boa parte do dia caminhando por aquelas
selvas sem fim. Percorríamos as armadilhas para ver se algum animalzinho havia
caído nelas, buscávamos mel, cortávamos alguns palmitos, visitávamos os
vizinhos, alguns muito longe, via as mulheres ir à roça buscar mandioca. Pelo
caminho, era frequente tocar flauta”.
Segundo Melià, o caminhar é provavelmente um hábito
“que rememora a migração” e tal prática também faz parte da vida espiritual dos
guarani. “Se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi
ou Kaiwá, por exemplo, o ‘mborahéi puku’, o ‘canto longo’, é uma marcha durante
13 ou mais céus para assim entrar na casa do Nosso Avô no fim. As longas
estrofes, no estilo de salmos, eles as comparavam, quando me traduziam seu
sentido, às marcas dos quilômetros de uma rodovia”, destaca.
De acordo com Melià, “a terra-sem-mal dos guarani
seria, nada mais e nada menos, ‘a terra da liberdade de todos os homens’”. E
enfatiza: “O caminho à terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo
contrário, faria começar aqui e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e
livre, sem alienação e sem opressão”.
Melià é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios
Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se
dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em Ciências
Religiosas pela Universidade de Estrasburgo, conviveu com os indígenas Guarani,
Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão
Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da
Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamos El don, la
venganza y otras formas de economía (Assunção: Cepag, 2004). Ele esteve na
Unisinos em 2006, por ocasião do Seminário Internacional A globalização e os
jesuítas. Neste ano, Melià retorna à univesidade para participar do XII Simpósio Internacional
IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade.
Na ocasião, ministrará a palestra A cosmologia indígena e a religião cristã:
encontros e desencontros de universos simbólicos, no dia 26-10-2010. Mais
informações no sítio do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a origem da língua guarani?
Ela sofre variações de acordo com a localização dos guarani?
Bartomeu Melià – A história não escrita da língua guarani começa há
cerca de 3.000 anos. Mas há 5.000 anos, na selva das línguas americanas, já se
levantava um tronco do qual brotariam, com o tempo, muitos ramos. Desse tronco,
que chamaremos de tupi, surgem oito famílias de línguas, sendo uma delas o
tupi-guarani.
“Digno de notar-se é o fato de que quase todas as
línguas do tronco tupi até agora reconhecidas se encontram na região do
Guaporé, isto é, do alto Madeira. Esse fato sugere que, talvez, o centro de
difusão do Proto-Tupi deva se localizar na área do Guaporé", diz Aryon D.
Rodrigues (1964:103). Com maior ou menor número de falantes, as línguas
da grande família tupi-guarani, que são faladas até hoje, são umas 28, sem
contar os dialetos e as variedades que existem no seio de algumas delas, como a
guarani. São guarani as línguas do povo Pãi-Kaiowá no Brasil, do povo Avá –
Ñandeva no Brasil – e do povo Mbyá, que se estende pela Argentina, Brasil e
Paraguai. São guaranis também os Guarayos e os Ava – conhecidos como Chiriguaná
– da Bolívia. O guarani paraguaio é um caso à parte, pois é língua indígena
colonial de uma nação que não se reconhece como indígena, apesar de suas
origens.
Como e por que se chegou a tanta diversidade apesar
da unidade de origem? No caso da língua guarani, na qual subsistem pelo menos seis
variedades dialetais, como vimos, a explicação mais coerente e científica
postula a existência de movimentos migratórios que afastavam os diversos grupos
de seu lugar de origem e os distanciavam entre si. A “nação” guarani é o
resultado dessas ondas migratórias, embora não exista acordo até hoje para
determinar seu lugar de origem, nem as rotas de sua migração, nem mesmo os
tempos em que tais migrações ocorreram.
Muitos arqueólogos – não todos – admitem que uma
onda migratória chegou até a bacia do rio Paraguai e por ele desceu até o
Paraná, subiu por este e, seguindo as ramificações de seus afluentes, chegou
até o litoral atlântico, enquanto outros grupos saltavam para a bacia do rio
Uruguai e adentravam até o Jacuí. A migração chegou a enfrentar os climas mais
frios do delta do Rio da Prata, segundo Pedro Ignácio Schmitz (1991).
Ali, porém, podia-se plantar e colher milho, mas não mandioca. É significativo
que a palavra “avati” – milho – tenha sido a primeira palavra guarani
registrada em uma carta em castelhano de Diego García, de 1530.
IHU On-Line – Como o senhor descreve a cultura
milenar guarani, fundamentada na ancestralidade histórica, política e
organizativa?
Bartomeu Melià – Quase todos os guaranis que eu conheço se referem
à sua própria cultura, àquela que os identifica como povo, como um “ñande
reko”, que significa “nosso modo de ser, nosso costume, nosso sistema e
condição, nossa lei e hábito”. É claro que cada um desses diferentes povos
coloca traços específicos em seu modo de ser: sua língua tem características
próprias que a outra, de outro povo guarani, não tem. Ao escutar um índio Mbyá
falar, distinguem-se em seguida traços fonéticos que os diferenciam, por
exemplo, de um Paĩ ou de um Avá. Diga-se o mesmo de sua cestaria, de sua
cerâmica, de seus rituais religiosos, do lugar de culto, de seus instrumentos
musicais etc. Mesmo assim, é possível falar de um índio guarani genérico e uma
cultura guarani. Ele é migrante, mas ao mesmo tempo é agricultor, vive em
comunidades ou aldeias, sua organização social fundamental é a família extensa,
governa-se mediante assembleias – “aty” – pequenas ou grandes, reconhece
líderes religiosos e/ou políticos, tem uma religião baseada na palavra
inspirada Pelos de Cima [Los de Arriba], palavra que se faz sacramento também
mediante o canto e a dança, e se rege por eventuais profecias, entre as quais a
chamada busca da terra-sem-mal teve preponderância.
IHU On-Line – Como são e a quem são dirigidas as
orações dos guaranis? Quem são seus deuses e qual é o significado de seus
cultos e rituais?
Bartomeu Melià – Como povos agrícolas, não é estranho que Deus seja
concebido como Pai Grande, Avô Primeiro e Sem Fim. Não é de se admirar, pois,
que, uma vez convertidos ao catolicismo, a expressão de “Ñande Ru” – nosso Pai
– não fosse em nada estranha. Há outros espíritos ou entes divinos com nomes
diferentes, segundo os vários povos guaranis. O mais conhecido foi Tupã, deus
do trovão, mas também existem Jakairá, protetor da natureza e dos cultivos, e
Karaí, o protótipo dos profetas. Alguns, como Kurupi, o duende do meio-dia,
passou inclusive para o folclore colonial. As almas dos defuntos, as que ficam
junto do lugar do enterro, se convertem em fantasmas temíveis que é preciso
aplacar e das quais é preciso se manter longe, enquanto que a alma-palavra,
essa não morre. Certamente, essa é uma visão um tanto superficial por ser
sintética. A realidade, pelo que suspeitamos, é muito mais complexa.
IHU On-Line – Entre os guarani é comum a prática do
"caminhar", definida, na língua guarani, como "guata". O
que esse “caminhar” significa espiritualmente? Isso, de alguma maneira, está
relacionado com a busca da terra sem males?
Bartomeu Melià – “Guata” é caminhar, andar, viajar ou passear,
segundo o primeiro dicionário de 1639, “Tesoro de la lengua guaraní”, do
jesuíta Antonio Ruiz de Montoya. Na realidade, o caminhar faz parte da
vida do guarani, que são grandes caminhadores. Comecei a visitar e conviver com
os guarani em 1969. Passávamos boa parte do dia caminhando por aquelas selvas
sem fim. Percorríamos as armadilhas para ver se algum animalzinho havia caído
nelas, buscávamos mel, cortávamos alguns palmitos, visitávamos os vizinhos,
alguns muito longe, via as mulheres ir à roça buscar mandioca. Pelo caminho,
era frequente tocar flauta. Toda a selva estava cheia de caminhos, de pessoas
que se cruzam com os caminhos dos animais.
Já não existem selvas agora, e caminhar pelos
intermináveis campos de soja não tem graça nenhuma, além do perigo para a saúde
que isso provoca. Os próprios produtores de soja vivem da soja, mas evitam
viver na soja.
O caminhar é provavelmente um hábito que rememora a
migração. Mas se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os
Pãi ou Kaiwá, por exemplo, o “mborahéi puku”, o “canto longo”, é uma marcha
durante 13 ou mais céus para assim entrar na casa do Nosso Avô no fim. As
longas estrofes, no estilo de salmos, eles as comparavam, quando me traduziam
seu sentido, às marcas dos quilômetros de uma rodovia. O próprio “mito dos
gêmeos”, mito das origens, é concebido como uma marcha através do mundo e da
cultura, para chegar no fim à casa da Mãe, onde há grande abundância de
alimentos e onde nos encontramos com o Pai mediante o ritual em que as maracas
fazem escutar vozes d'O Alto.
IHU On-Line – Qual é o modelo de educação seguido
pelos guarani? É uma educação da palavra e pela palavra?
Bartomeu Melià – Efetivamente. Para o guarani, a Palavra é tudo,
tudo para ele é palavra. E a palavra nunca é a de um só. Portanto, é uma
educação comunitária e ao serviço da comunidade, embora haja também uma palavra
própria, poética, que chega pela inspiração, mas é colocada ao serviço de
todos, especialmente nas celebrações rituais. Pelo que observei, o menino e a
menina são socializados desde muito pequenos não só pelos pais e pelas mães,
mas eles são postos em condições para que possam estar abertos às palavras que
receberão por meio dos relatos que escutam no pátio da aldeia ou em sua casa,
mas sobretudo por meio dos cantos rituais. Toda essa atividade é feita em um ambiente
de tranquilidade e paz, sem gritos, nem golpes. Chama a atenção como os pais de
crianças de dois, três ou quatros anos as fazem raciocinar com paciência quando
fizeram algo incorreto. O ambiente é de grande liberdade. A história de um
guarani é a história de suas palavras, palavras escutadas e palavras ditas,
palavras inspiradas e palavras rezadas, palavras pronunciadas em uma assembleia
e palavras apenas sussurradas na vida íntima.
A educação escolar formal obedece a outro sistema
que costuma trazer resultados desastrosos, sobretudo quando o docente vem do
mundo dos brancos. No Brasil, no entanto, são agora numerosos os professores
indígenas, alguns com formação universitária. São conscientes das grandes
possibilidades que a escritura e o uso dos meios de comunicação digital
oferecem, e se tornaram especialistas em seu manejo – muito mais do que eu, com
certeza –, mas também estão muitos preocupados com os efeitos contrários que esses
meios podem trazer ao sistema guarani. Essa problemática foi discutida nesta
semana no VIII Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas, na
Universidade Federal da Grande Dourados (25-29 de maio de 2010).
IHU On-Line – Qual é o significado da busca da
terra sem males para os índios guarani? De que maneira essa busca é vista como
fator essencial para se entender o povo guarani e sua visão de mundo?
Bartomeu Melià – Curiosamente, o conceito de terra-sem-mal outorgou
aos guarani um caráter de modernidade notável. Do conceito, apropriaram-se não
só os antropólogos, mas também ecologistas, filósofos, sociólogos,
historiadores, poetas e teólogos. A Missa da terra-sem-males , de Dom Pedro
Casaldáliga e Pedro Tierra, é em si um poema admirável e apaixonado. Do
guarani, foi amplamente divulgada a imagem de quem busca, incansável e
profeticamente, essa terra-sem-mal. Falar de guarani se tornou quase sinônimo
da busca da terra-sem-mal. Desse modo, uma experiência indígena se tornou
exemplar e paradigmática para se pensar e trabalhar uma realidade mais ampla e
geral, como é o projeto – a utopia – de uma sociedade mais solidária e humana.
Segundo os versos de Casaldáliga (1980):
Os pobres
desta terra
queremos inventar
essa Terra-sem-males
que vem cada manhã
E é verdade que as palavras “yvy marane’ÿ” – terra
sem-mal – assim como “ka’a marane’ÿ” – selva ou monte sem-mal – constam já no
“Tesoro”, de 1639, mas com um sentido mais ecológico e realista. Trata-se de um
solo intacto, de um monte ou selva não trabalhado, de onde ainda não se tirou
madeira. Por analogia, “kuña marane’ÿ” é mulher virgem, e o epíteto foi
aplicado pelos missionários à Virgem Maria. O caminho à terra-sem-mal não
desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui e agora essa utopia,
em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão. A terra-sem-mal
dos guarani seria, nada mais e nada menos, “a terra da liberdade de todos os
homens”, como entendeu também Casaldáliga.
IHU On-Line - Essa interpretação concorda com a realidade
etnográfica e o processo histórico dos guarani?
Bartomeu Melià - Em princípio, sim. Mas é preciso esclarecer
que nem todos os guarani falam da terra-sem-mal. Aos Mbyá, parece ser uma
novidade inventada por antropólogos e renegam o conceito, embora tenham outras
palavras que seriam equivalentes.
A verdade é que os guarani escolheram climas
úmidos, com uma temperatura média entre 18 e 22º C, se localizaram
preferencialmente nas orlas de rios e lagunas, em lugares que não excedem os
400 metros acima do nível do mar, habitando bosques e selvas típicas da região
subtropical.
Mas a ecologia guarani não é só natureza, nem se
define pelo seu valor exclusivamente produtivo. Com uma expressão que lhe é
muito característica, o guarani se refere ao seu território como “tekoha”. Pois
bem, se o “teko” é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o
“tekoha” é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo
de ser guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem
“tekoha” não há “teko”. O “tekoha” ideal é um monte preservado e pouco
perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas
silvestres. Além disso, há manchas de terra especialmente férteis para nelas se
fazer as roças e os cultivos. E, por fim, um lugar onde será levantada a grande
casa comunal, com um grande pátio aberto, ao redor do qual crescem alguns pés
de banana, de tartago, de algodão e de urucu. São esses espaços: monte, roça e
aldeia, que dão a medida da boa terra guarani.
Há até muito pouco tempo – antes que chegasse a
rápida deterioração ecológica da região –, caminhar pelos caminhos de um
“tekoha” guarani e descansar em suas casas era ver um espetáculo e escutar uma
sinfonia. Essa é a terra boa que o guarani, caminhante, horticultor e aldeão,
procurou incansavelmente para nela cultivar e viver.
Com boa produção agrícola, pode-se ter muita e
abundante comida, e a possibilidade de fazer festa é muito maior. O fundamento
da terra guarani acaba sendo, desse modo, a festa, onde se compartilha a alegre
bebida da chicha – “kaw” –, e onde há uma festa guarani aí está, no fim das
contas, o centro da terra e a terra boa e perfeita à qual se aspira.
Para o guarani, há uma relação direta entre
terra-sem-mal e perfeição da pessoa. O caminho de uma leva à outra. E assim
como a terra-sem-mal é real e está neste mundo, a perfeição, que, em seu grau
de excelência, inclui o não-morrer – que não é simplesmente a imortalidade –,
também é real na terra. A terra-sem-mal como terra nova e terra de festa,
espaço de reciprocidade e de amor mútuo, produz também pessoas perfeitas, que
não saberiam morrer.
Historicamente, o guarani tem uma experiência
inegável do mal na terra: é a festa impossível, a perfeição inalcançável. São
numerosas as tradições que falam de catástrofes e cataclismos que já
aconteceram e são sempre possíveis. As diversas metáforas da destruição da
terra e de seus males podem receber uma leitura natural e desmitificada: se
trataria de prolongadas secas, esgotamento do solo, diversas pragas de animais
daninhos, eclipses do sol e da lua, inundações, ataques de inimigos... Não é
essa, no entanto, a interpretação indígena. O mal na terra, essa “coisa
deforme”, nunca é um fenômeno natural nem uma circunstância meramente
ecológica. É algo que afeta e destrói o modo de ser guarani.
Os Paÿ e Kaiowá contemporâneos assinalam como
causas que podem provocar a destruição da terra a violência e, em especial, o
homicídio, as faltas cometidas contra a ordem moral, quando são negados a
colaboração e o amor mútuo, e também a ofensa moral, quando não há
reconciliação.
O mal atual consiste nos montes, nas cercas das
fazendas que cortam os caminhos e reduzem a nada as terras indígenas, no
egoísmo dos brancos e na falta de religião destes mesmos. É por isso que os
cataclismos de sempre estão à espreita para se abater sobre o mundo: ventos de
furacão, tempestades, incêndios, inundações, desgraças de todo o tipo, em forma
de mortes repentinas, enfermidades incuráveis, fomes e mal-estar social.
O mal da terra não é de agora. Não há dúvida de que
foi com a entrada do sistema colonial que o mal irrompeu com força inusitada e
formas inéditas. Pestes, escravidão, cativeiro e perseguições foram os quatro
cavaleiros do apocalipse colonial. A história colonial é, para o guarani, uma
progressão de males que parece não ter fim nem limite. O pior de todos os males
coloniais será simplesmente negar a terra aos guarani. Ir aonde? Desaparecem as
selvas e os montes, tudo se torna campo, e o campo é exigido pelo branco para
as suas vacas. Toda a terra se torna mal. O “mba’e meguã” – a coisa ruim –
cobre tudo.
Migrante e, portanto, frequentemente
“trans-terrado”, o guarani, nunca antes havia sido tão des-terrado. Agora, em
busca da terra-sem-mal, ele só teme o dia em que só haverá mal sem terra.
Então, não haverá nem terra nem palavra.
Estive com frequência em assembleias e em rituais
em que os discursos e as rezas expressam a dramática busca do povo guarani, em
vista à recuperação da terra-sem-mal. Certamente, se apresentam dificuldades
enormes, principalmente para reconstituir um território guarani, que, por outro
lado, seria de grande valor para o Brasil inteiro e para toda a região do Rio
da Prata. Os guarani continuam lutando nessa busca. Isso lhes dá um sentido de
ser, eles mesmos, profecias vivas e de ser, para todos nós, memória de futuro.