Direito Autoral

Desrespeitar os direitos autorais é crime previsto na Lei 9610/98.

15 novembro 2020

Aviso importante.

 

Estimados e Estimadas seguidores/as

Comunicamos a migração deste Blog para outra plataforma.  Desde já, agradecemos pelo acolhemimento ao longo de quase 15 anos, que tivemos junto ao Blogger.  A equipe dos Blogs "Art'palavra" e "Tecido de vozes" deseja saúde e paz, esperando encontrar a todos/as em <gracagrauna.com>, no Wordpress.

14 setembro 2020

Porque cantamos: Mário Benedetti

Benedetti, no Café Brasil, em Montevidéu/1997



Porque cantamos

(Mário Benedetti)

 


Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

 

você perguntará por que cantamos

 

se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos 
antes mesmo de explodir a vergonha

 

você perguntará por que cantamos

 

se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

 

você perguntará por que cantamos

 

cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

 

cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

 

cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota


cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

 

cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos

deixar que a canção se torne cinzas.                     



NOTA:

Hoje, 14 de setembro de 2020, o poeta urguguaio Benedetti completaria 100 anos. A poesia continua se perguntando: "Por que cantamos?" E apesar desses tempos sombrios,  opto por responder o que sugere a poesia: "...cantamos porque o grito só não basta [...] e porque venceremos a derrota....". 

Viva a poesia! Viva Benedetti, sempre.


Ameríndia, 14/09/2020

Graça Graúna (potiguara/RN)



13 agosto 2020

Pedro Casaldáliga descansa onde sonhou...

 

Pedro descansa onde ele sonhou, na beira do Araguaia, entre um peão e uma prostituta

Foto: Raul Vico



13 Agosto 2020


Fonte: www.ihu.unisinos.br



Descansar eternamente em meio àqueles que marcaram sua vida, os que não contam, os que o mundo colocou do lado de fora da história. O desejo de Pedro foi cumprido, ele descansa no cemitério dos Karajás, na beira do Araguaia, que regou sua vida por mais de 50 anos, lá onde eram sepultados os sem nome, lá onde ele sempre sonhou em ficar para sempre, no meio de um peão e uma prostituta.

 


A reportagem é de Luis Miguel Modino.

 

Pedro sempre foi um homem cheio de sonhos, “o sonho de Deus, foi o sonho de Pedro também, o sonho do Reino”, como afirmava Dom Adriano Ciocca, bispo de São Félix do Araguaia, na missa exequial celebrada neste 12 de agosto no Centro de Pastoral Tia IrenePedro vai ficar no meio daqueles que foram parte fundamental da sua vida, pois “ele queria justiça, queria fartura, queria alegria, vida plena para todos e para todas. Não importa a raça, não importa o sexo, não importa a cultura, não importa nem a religião”, insistia o bispo.

Ao falar desses sonhos de PedroDom Adriano, afirmava que “ele sonhou, e sonhou com os pés no chão, porque não só ficou no sonho, mas ele procurou viver e lutar para que esse sonho se realizasse. O banquete do Reino tem que começar aqui na terra e nós somos responsáveis para que a alegria da partilha, a plenitude da fraternidade tenha pelos menos alguns sinais entre nós”. Esse sonho, presente na vida de Pedro, o tornou realidade. Para que acontecesse esse sonho, “Pedro decidiu seguir Jesus, seu Mestre, na radicalidade, na fidelidade que todos nós conhecemos”, segundo o atual bispo de São Félix, que destacava em Casaldáliga sua disposição para se colocar no no último lugar, Pedro “se fez peão com os peões, se fez índio com os índios, se fez solidário com quem Deus se solidarizou, os abandonados, os excluídos, os escravos”.

Uma postura de vida radical, assim é como Dom Adriano Ciocca definia Dom Pedro, como aquele “que serviu de exemplo e continua servindo de exemplo para nós”. Ele é visto pelo bispo como “uma semente plantada na beira do Rio Araguaia, uma semente que deve crescer, e deve produzir muitos frutos”. Seguindo seu exemplo, Dom Adriano lançava o desafio de “que cabe a nós fazer que aquilo que semeou, aquilo que Pedro acreditou, o modo como ele viveu o Evangelho, nessa dedicação e serviço total, de encarnação plena, possa ser um dos sinais, possa ser a marca registrada e continue definindo nossa Igreja de São Félix do Araguaia, nossa Prelazia”.

Mas o exemplo de Pedro tem que se fazer presente na vida do povo, “tem que ser a marca de vida que nós devemos levar, tem que ser essa força de transformação, tem que ser essa força que vai fazer brotar frutos de justiça, frutos de vida, frutos de amor”, insistia Dom Adriano, que via como caminho para que a vida de Pedro possa marcar nossa vida, retomar, meditar seus versos, fazer que eles se tornem parte concreta de nossa existência. O desafio é que “essa luz possa continuar iluminando para que o sonho do grande banquete da vida seja visibilizado, apesar de todos os entraves que nós conhecemos e que estamos vivendo neste tempo”, afirmava o bispo, que agradecia Dom Pedro pelo seu exemplo, sua fidelidade a Cristo.

Aquele que nunca mais voltou na Catalunha que o viu nascer, nunca esqueceu o que suas origens representavam em sua vida. Aquele Pere que sendo criança corria nas ruas de Balsareny quis que essa terra que pisou se misture com a terra do Araguaia para sempre, algo que foi realizado quando foi colocada a terra de Balsareny no seu caixão junto com um pedra do Mosteiro de Montserrat, referência de fé na vida de todo catalão.

A despedida de Pedro foi momento de homenagens, de celebração esperançada. Foram muitos, gente conhecida, mas também o povo anônimo, que quis fazer sua homenagem. Sirvam de exemplo as palavras que desde Manaus enviava o sucessor de Dom Pedro como bispo de São FélixDom Leonardo Ulrich Steiner, que definiu seu predecessor como um místico, “enraizado na terra, na humanidade e em Deus”, alguém livre, ousado, inspirado, de vida simples e despojada, que percorreu as veredas do Evangelho dos pobres, uma prova daquilo que o primeiro bispo de São Félix transmitia com sua vida. Por tudo isso, o arcebispo de Manaus mostrava sua gratidão profunda a Deus e a Pedro, por tudo o que viveu no Vale dos Esquecidos, mas sobretudo pelos pequenos detalhes da convivência.



Foto: Luis Miguel Modino

 

Adolfo Pérez Esquivel, que sempre viu Pedro como um sinal de justiça e de paz, também enviava sua mensagem ao amigo. Foram homenagens e palavras de agradecimento que foram repartidas pelos presentes, pelos bispos, pelo povo, também pelos indígenas do povo xavante, que o homenageavam com reverência e admiração, reconhecendo a importância que as lutas de Pedro, um valente guerreiro, tiveram para que hoje, mesmo diante das dificuldades e perseguições, eles continuem vivos, sem perder a esperança.

Pedro está ressuscitado, contemplando o Araguaia desde sua beira, lá onde ele sentava para rezar, para contemplar a obra do Deus Criador, para inspirar sua mente que se traduzia em poesia, em Evangelho encarnado na vida de um povo e uma terra que nunca irão esquecer seu profeta, seu poeta.

09 agosto 2020

Dia Internacional dos Povos Indígenas

 

                                        Crédito da foto: Graça Graúna

DECLARAÇAO SOLENE DOS POVOS INDÍGENAS DO MUNDO

 

Nós, povos indígenas do mundo, unidos

numa grande assembleia de homens sábios,

declaramos a todas as nações:

Quando a terra-mãe era o nosso alimento,

quando a noite escura formava o nosso teto,

quando o céu e a lua eram nossos pais,

quando todos éramos irmãos e irmãs,

quando nossos caciques e anciãos

eram grandes líderes,

quando a justiça dirigia a lei e sua execução,

aí outras civilizações chegaram!

Com fome de sangue, de ouro,

de terra e de todas as suas riquezas,

trazendo numa mão a cruz

e na outra a espada.

Sem conhecer ou querer aprender

os costumes de nossos povos,

nos classificaram abaixo dos animais.

Roubaram nossas terras e nos levaram

para longe delas, transformando em escravos

os “Filhos do Sol”.

Entretanto, não puderam nos eliminar,

nem nos fazer esquecer o que somos,

porque somos a cultura da terra e do céu

porque somos de uma ascendência milenar

E somos milhões.

E mesmo que nosso universo seja destruído,

NÓS VIVEREMOS,

por mais tempo que o império da morte!

 

(Conselho Mundial dos Povos Indígenas, Port Alberni, 1975)

03 junho 2020

Poéticas da Quarentena

Imagem: GGraúna


Um parente pergunta
se estou bem
e eu só respondo:
minhas asas doem
nesse confinamento


Ameríndia,  3/6/2020
Graça Graúna



Nota: Impressões de leitura do poema "Quarentena", 
por Aline e Erica, da Editora Pachamama.





09 maio 2020

Saberes indígenas: da prosa ao verso e outras artes (1ª parte)



Graça Graúna, potiguara/RN
(Escritora indígena)

Na ânsia de pegar estrada pelo Brasil, com o intuito de trabalhar a literatura indígena; escrevi uma carta a professores/as indígenas e não indígenas, propondo a realização de Rodas de Conversas e Oficinas Literárias. O apoio foi irrestrito, de maneira que o nosso planejamento mostrou a possibilidade de realizar quatro viagens no primeiro semestre e mais quatro viagens no segundo semestre de 2020; levando na bagagem a esperança de que a literatura indígena pode também melhorar o mundo. À medida que o calendário de viagens foi se formando, mais convites apareceram; totalizando onze viagens que eu faria pelo Brasil.
Tudo estava bem encaminhado, quando fomos surpreendidos pelo Covid-19. Entramos em quarentena, atentos às sérias recomendações de “ficar em casa”, pois veio a pandemia com toda força; vitimando milhares e milhares de pessoas no mundo. Os povos originários estão entre os mais vulneráveis. E é imensurável a preocupação dos filhos da terra, diante também de outra grande ameaça que é a constante invasão de posseiros em territórios indígenas; como se não bastasse a Democracia andar ameaçada em nosso país.  
Apesar do isolamento social, o Projeto “Saberes indígenas: da prosa ao verso e outras artes” (que ficara para depois) ganhou uma roupagem diferente: agora, a meta é alcançar por meio de Blogs, Whatsapp, E-mails e outras redes sociais os parentes, as comunidades, os alunos/as e professores/as indígenas e não indígenas para trocar ideias, tirar dúvidas, conversar, estudar, pesquisar, dialogar sobre literatura indígena.
No “Caderno do tempo”, elaborado por educadores/as indígenas, junto ao Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF, 2006, p. 25), os saberes do povo Atikum estão atrelados ao tempo que determina cada ação para ser realizada; tempo de organizar e realizar reuniões e “tratar de assuntos relacionados à toda comunidade, desejos, problemas, necessidades ligadas à agricultura [...] e à escola para o fortalecimento e desenvolvimento do nosso povo”.
 Ao refletir a importância do tempo para nós indígenas, retomei o contato com Jeane:  presidente da Associação Indígena do Poço da Pedra (AIPAPP) e uma das lideranças do povo Atikum que vive no município de Salgueiro/PE. 

Jeane Atikum

A parente Jeane aceitou o meu convite para fazer parte da consultoria do referido projeto. Recentemente, ela chamou a professora Graça Atikum, que é também liderança, para dialogarmos sobre literatura e ensino nas Escolas Indígenas. 
Graça Atikum

Nesta perspectiva, seguem as perguntas da parente Graça Atikum e as minhas respostas sobre uma arte que muitos desconhecem: a literatura indígena. Em tempo, espero que estas reflexões se transformem em convite para mais uma roda de conversa:


Graça Graúna


1) O que é literatura indígena e quais as principais características?
O conceito de literatura é amplo. Entretanto, no que se refere à literatura indígena, podemos dizer que significa um dos instrumentos que dispomos para refletir acerca das tragédias cometidas pelos colonizadores contra os povos indígenas; a nossa literatura é também um instrumento de paz, a fim de cantarmos a esperança de que dias melhores virão para os povos indígenas no Brasil e em outras partes do mundo.
Sobre as características dessa literatura é possível observar, entre outros aspectos:   um conjunto de vozes de autores/as indígenas; os autores/as procuram testemunhar a sua vivência e transmitir “de memória” as histórias contadas pelos parentes mais velhos, embora muitas vezes se sintam estranhos na própria terra; um estranho aos olhos dos não indígenas.

2) Na sua opinião, a literatura indígena vem ocupando o seu espaço de direito na sociedade ou ainda está na invisibilidade?
Aos poucos, a literatura indígena está saindo da invisibilidade, mas é notório o preconceito que existe em torno da poesia e da narrativa dos povos originários; basta folhear os chamados manuais literários que circulam no meio acadêmico, onde sequer os/as autores/as indígenas são mencionados/as. Porém, um dos caminhos para quebrar essa invisibilidade é a divulgação; seja de boca em boca na aldeia ou na cidade grande; é importante divulgar essa literatura por meio de redes sociais, em eventos literários, em rodas de conversa e em seminários, de maneira que os leitores tenham a oportunidade de conhecer mais de perto a nossa história de resistência.

3) Ainda nos deparamos com livros que não tratam da verdadeira história dos povos indígenas. Que autores indígenas contemporâneos podem contribuir, por meio de suas obras, para o estudante indígena repensar a história do seu povo?
Entre os/as autores/as que em suas reflexões discutem o papel do indígena hoje, cabe sublinhar o nome de Ailton Krenak, Bruno Kaingang, Edson Kayapó, Álvaro Tukano, Gersem Baniwa, Daniel Munduruku, Darlene Taukane, Naine Terena, Márcia Kambeba e Rita Gomes do Nasimento entre outros que fazem parte do grande número de pensadores/as, escritores/as e lideranças indígenas que trabalham em prol do reconhecimento dos saberes dos povos originários. Para saber mais, está disponível na Internet a obra coletiva "Educação em rede: culturas indígenas, diversidade e educação", Vol. 7, que o Sesc publicou em 2019.


4) O que devemos ensinar na Educação Infantil, na área da literatura, tendo em vista que essa modalidade de ensino é considerada o primeiro pilar para as crianças tomarem gosto pela leitura?
Atualmente, as livrarias vêm alimentando suas prateleiras com livros de autoria indígena, em geral livros destinados ao chamado público infantil; o que, de certa forma, cria o rótulo de que os autores e as autores indígenas escrevem apenas para esse público; o que não é verdade.  Ocorre que o mercado editorial vê na temática indígena um gancho para alimentar também as narrativas de autores não indígenas e que geralmente tratam o indígena como um simples elemento de uma paisagem romantizada e sem protagonismo. Um agravante é o pouco ou quase nenhum investimento do Estado em obras de autoria indígena; contribuindo assim, para que a sociedade dominante continue vendo no indígena mais um elemento do folclore. No meu entender, o que deve ser considerado como pilar na educação escolar indígena é o que herdamos dos nossos ancestrais; dos nossos pais, avós e lideranças; pois é levando na alma esses saberes que tornamos a Escola Indígena e nós mesmo, mais fortes.

5) Qual a diferença entre as histórias de tradição oral indígena e as histórias de “trancoso”?
O termo “trancoso” tem origem europeia, mais precisamente em Portugal, onde viveu Gonçalo Fernandes Trancoso: um contista do século XVI. Essa observação nos autoriza a dizer que as narrativas indígenas têm vida própria, isto é, não devem ser incluídas no gênero “contos de trancoso”; considerando o fato de que a literatura indígena, a começar por sua tradição oral, existe antes da invasão dos colonizadores no Brasil. Outro aspecto a ser levado em consideração é que, há muito, a expressão “história de trancoso” significa “história de mentira, irreal”. De tal forma, esta definição não pode retratar a memória dos povos originários que, em suas narrativas, traduzem com elementos simbólicos ou concretos o que é real em seu conhecimento ancestral.

6) No Ensino Médio, a maioria dos jovens alunos não se interessa muito por literatura. Como reverter esse quadro e tornar a aula mais atrativa?
Recordo, aqui, o pensamento do indigenista Bartomeu Meliá: um estudioso da cultura e da história indígena. Ele costumava dizer que “a ação pedagógica para a alteridade não é uma descoberta feita pela sociedade ocidental [...] para oferecer aos povos indígenas, muito pelo contrário: é o que os povos indígenas ainda podem oferecer à sociedade nacional” (Cf. Graúna, em: Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil, 2013, p. 93). Creio que, se os jovens (indígenas ou não indígenas) tiverem oportunidade de ler textos com os quais se identifiquem; se entenderem o que significa uma relação de interação e dependência com outro; se tiverem a chance de expor sua visão de mundo em casa ou na sala de aula, certamente passarão a gostar de literatura.

7) No Romantismo, alguns autores tratavam o índio como herói. O indianismo, por exemplo, foi destaque nas obras de José de Alencar. No seu ponto de vista, como os indígenas são vistos na atualidade?
No Abril Indígena de 1999, escrevi um artigo que o jornal Porantim publicou, em julho do mesmo ano. Trata-se do artigo “Um flagrante do marginalizado na literatura brasileira”, no qual abordo a influência e a representação do indígena na literatura nacional. Falo dos discursos equivocados a respeito dos povos indígenas nos textos dos padres jesuítas, na poesia do Arcadismo de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, e nos romances de Alencar, entre outros românticos; em que o índio é visto superficialmente em sua identificação étnica. Sempre marginalizado. Nesses moldes, a literatura brasileira tem se revelado mais excludente do que se caracterizado pela convivência solidária, na abordagem de temas relacionados aos povos indígenas no Brasil.

8) Na escola Estadual Indígena José Pedro Pereira, do povo Atikum (Salgueiro/PE), os estudantes do 3° ano do Ensino Médio são convidados a elaborar um TCCI (Trabalho de Conclusão de Curso Indígena); pois a pesquisa científica requer leituras bibliográficas; de maneira que seja apresentada, posteriormente, a uma banca examinadora na Escola. Diante disso, gostaria que a Senhora indicasse alguma bibliografia para eles enriquecerem os trabalhos de TCCI.
A resposta para esta questão vai ao encontro dos nomes de autores e autoras que sugeri na terceira pergunta. Os TCCs como o próprio nome sugere, exigem tempo e amor à leitura; assim como sugere o jeito de ser e de viver o tempo, na visão do povo Atikun; pois há tempo de brincar com badoque, pião, boneca de milho... tempo de cuidar da roça, de dançar o Toré e passar essa ciência aos mais novos.

9) Qual foi a sua inspiração para seguir o caminho da literatura?
Desde cedo, tomei gosto pelos livros; aprendi com meus pais e minha avó materna (potiguara/RN) a ler o mundo. Foi na Universidade, que eu tive a oportunidade de ver e ouvir o Mestre Paulo Freire. A defesa que ele sempre fez da “leitura do mundo” foi e continua sendo uma das motivações para seguir o caminho do constante exercício de escrita. Sempre gostei de literatura, principalmente o fazer poético que, no meu entender, pode melhorar o mundo.

15 dezembro 2019

Meliá e a terra da liberdade de todos os homens

Imagem do Google



Meliá e a terra da liberdade de todos os homens


O antropólogo jesuíta Bartomeu Meliá, aos 87anos, foi ao encontro de Ñanderu, no dia 6 de dezembro de 2019, em Assunção, Paraguai. Sua convivência com o povo Guarani ao longo de 50 anos traz um legado de amor à vida e respeito ao outro, como sugere a entrevista que segue; publicada na Revista Unisnos, em 31 de maio de 2010. Ao compartilhar a entrevista do padre Meliá para a Revista Unisinos, expressamos nosso respeito e admiração ao pesquisador que também caminhou com os Guarani em busca de uma terra sem opressão.

Saudações indígenas,

Graça Graúna (descendente potiguara/RN)

“A história de um guarani é a história de suas palavras”

Fonte: Patricia Fachin | Tradução de Moisés Sbardelotto (Revista Unisinos)

Segundo Bartomeu Melià, a palavra representa tudo na vida dos guarani e é por meio dela que eles estabelecem uma educação comunitária, que está a serviço de todos
O pesquisador Bartomeu Melià convive com os guarani desde 1969 e os define como “grandes caminhadores”. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, ele conta como era a rotina ao lado desse povo. “Passávamos boa parte do dia caminhando por aquelas selvas sem fim. Percorríamos as armadilhas para ver se algum animalzinho havia caído nelas, buscávamos mel, cortávamos alguns palmitos, visitávamos os vizinhos, alguns muito longe, via as mulheres ir à roça buscar mandioca. Pelo caminho, era frequente tocar flauta”.
Segundo Melià, o caminhar é provavelmente um hábito “que rememora a migração” e tal prática também faz parte da vida espiritual dos guarani. “Se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi ou Kaiwá, por exemplo, o ‘mborahéi puku’, o ‘canto longo’, é uma marcha durante 13 ou mais céus para assim entrar na casa do Nosso Avô no fim. As longas estrofes, no estilo de salmos, eles as comparavam, quando me traduziam seu sentido, às marcas dos quilômetros de uma rodovia”, destaca.
De acordo com Melià, “a terra-sem-mal dos guarani seria, nada mais e nada menos, ‘a terra da liberdade de todos os homens’”. E enfatiza: “O caminho à terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão”.
Melià é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em Ciências Religiosas pela Universidade de Estrasburgo, conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamos El don, la venganza y otras formas de economía (Assunção: Cepag, 2004). Ele esteve na Unisinos em 2006, por ocasião do Seminário Internacional A globalização e os jesuítas. Neste ano, Melià retorna à univesidade para participar do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. Na ocasião, ministrará a palestra A cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros de universos simbólicos, no dia 26-10-2010. Mais informações no sítio do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a origem da língua guarani? Ela sofre variações de acordo com a localização dos guarani?
Bartomeu Melià – A história não escrita da língua guarani começa há cerca de 3.000 anos. Mas há 5.000 anos, na selva das línguas americanas, já se levantava um tronco do qual brotariam, com o tempo, muitos ramos. Desse tronco, que chamaremos de tupi, surgem oito famílias de línguas, sendo uma delas o tupi-guarani.
“Digno de notar-se é o fato de que quase todas as línguas do tronco tupi até agora reconhecidas se encontram na região do Guaporé, isto é, do alto Madeira. Esse fato sugere que, talvez, o centro de difusão do Proto-Tupi deva se localizar na área do Guaporé", diz Aryon D. Rodrigues  (1964:103). Com maior ou menor número de falantes, as línguas da grande família tupi-guarani, que são faladas até hoje, são umas 28, sem contar os dialetos e as variedades que existem no seio de algumas delas, como a guarani. São guarani as línguas do povo Pãi-Kaiowá no Brasil, do povo Avá – Ñandeva no Brasil – e do povo Mbyá, que se estende pela Argentina, Brasil e Paraguai. São guaranis também os Guarayos e os Ava – conhecidos como Chiriguaná – da Bolívia. O guarani paraguaio é um caso à parte, pois é língua indígena colonial de uma nação que não se reconhece como indígena, apesar de suas origens.
Como e por que se chegou a tanta diversidade apesar da unidade de origem? No caso da língua guarani, na qual subsistem pelo menos seis variedades dialetais, como vimos, a explicação mais coerente e científica postula a existência de movimentos migratórios que afastavam os diversos grupos de seu lugar de origem e os distanciavam entre si. A “nação” guarani é o resultado dessas ondas migratórias, embora não exista acordo até hoje para determinar seu lugar de origem, nem as rotas de sua migração, nem mesmo os tempos em que tais migrações ocorreram.
Muitos arqueólogos – não todos – admitem que uma onda migratória chegou até a bacia do rio Paraguai e por ele desceu até o Paraná, subiu por este e, seguindo as ramificações de seus afluentes, chegou até o litoral atlântico, enquanto outros grupos saltavam para a bacia do rio Uruguai e adentravam até o Jacuí. A migração chegou a enfrentar os climas mais frios do delta do Rio da Prata, segundo Pedro Ignácio Schmitz  (1991). Ali, porém, podia-se plantar e colher milho, mas não mandioca. É significativo que a palavra “avati” – milho – tenha sido a primeira palavra guarani registrada em uma carta em castelhano de Diego García, de 1530.
IHU On-Line – Como o senhor descreve a cultura milenar guarani, fundamentada na ancestralidade histórica, política e organizativa?
Bartomeu Melià – Quase todos os guaranis que eu conheço se referem à sua própria cultura, àquela que os identifica como povo, como um “ñande reko”, que significa “nosso modo de ser, nosso costume, nosso sistema e condição, nossa lei e hábito”. É claro que cada um desses diferentes povos coloca traços específicos em seu modo de ser: sua língua tem características próprias que a outra, de outro povo guarani, não tem. Ao escutar um índio Mbyá falar, distinguem-se em seguida traços fonéticos que os diferenciam, por exemplo, de um Paĩ ou de um Avá. Diga-se o mesmo de sua cestaria, de sua cerâmica, de seus rituais religiosos, do lugar de culto, de seus instrumentos musicais etc. Mesmo assim, é possível falar de um índio guarani genérico e uma cultura guarani. Ele é migrante, mas ao mesmo tempo é agricultor, vive em comunidades ou aldeias, sua organização social fundamental é a família extensa, governa-se mediante assembleias – “aty” – pequenas ou grandes, reconhece líderes religiosos e/ou políticos, tem uma religião baseada na palavra inspirada Pelos de Cima [Los de Arriba], palavra que se faz sacramento também mediante o canto e a dança, e se rege por eventuais profecias, entre as quais a chamada busca da terra-sem-mal teve preponderância.
IHU On-Line – Como são e a quem são dirigidas as orações dos guaranis? Quem são seus deuses e qual é o significado de seus cultos e rituais?
Bartomeu Melià – Como povos agrícolas, não é estranho que Deus seja concebido como Pai Grande, Avô Primeiro e Sem Fim. Não é de se admirar, pois, que, uma vez convertidos ao catolicismo, a expressão de “Ñande Ru” – nosso Pai – não fosse em nada estranha. Há outros espíritos ou entes divinos com nomes diferentes, segundo os vários povos guaranis. O mais conhecido foi Tupã, deus do trovão, mas também existem Jakairá, protetor da natureza e dos cultivos, e Karaí, o protótipo dos profetas. Alguns, como Kurupi, o duende do meio-dia, passou inclusive para o folclore colonial. As almas dos defuntos, as que ficam junto do lugar do enterro, se convertem em fantasmas temíveis que é preciso aplacar e das quais é preciso se manter longe, enquanto que a alma-palavra, essa não morre. Certamente, essa é uma visão um tanto superficial por ser sintética. A realidade, pelo que suspeitamos, é muito mais complexa.
IHU On-Line – Entre os guarani é comum a prática do "caminhar", definida, na língua guarani, como "guata". O que esse “caminhar” significa espiritualmente? Isso, de alguma maneira, está relacionado com a busca da terra sem males?
Bartomeu Melià – “Guata” é caminhar, andar, viajar ou passear, segundo o primeiro dicionário de 1639, “Tesoro de la lengua guaraní”, do jesuíta Antonio Ruiz de Montoya.  Na realidade, o caminhar faz parte da vida do guarani, que são grandes caminhadores. Comecei a visitar e conviver com os guarani em 1969. Passávamos boa parte do dia caminhando por aquelas selvas sem fim. Percorríamos as armadilhas para ver se algum animalzinho havia caído nelas, buscávamos mel, cortávamos alguns palmitos, visitávamos os vizinhos, alguns muito longe, via as mulheres ir à roça buscar mandioca. Pelo caminho, era frequente tocar flauta. Toda a selva estava cheia de caminhos, de pessoas que se cruzam com os caminhos dos animais.
Já não existem selvas agora, e caminhar pelos intermináveis campos de soja não tem graça nenhuma, além do perigo para a saúde que isso provoca. Os próprios produtores de soja vivem da soja, mas evitam viver na soja.
O caminhar é provavelmente um hábito que rememora a migração. Mas se caminha também espiritualmente, nos longos rituais. Entre os Pãi ou Kaiwá, por exemplo, o “mborahéi puku”, o “canto longo”, é uma marcha durante 13 ou mais céus para assim entrar na casa do Nosso Avô no fim. As longas estrofes, no estilo de salmos, eles as comparavam, quando me traduziam seu sentido, às marcas dos quilômetros de uma rodovia. O próprio “mito dos gêmeos”, mito das origens, é concebido como uma marcha através do mundo e da cultura, para chegar no fim à casa da Mãe, onde há grande abundância de alimentos e onde nos encontramos com o Pai mediante o ritual em que as maracas fazem escutar vozes d'O Alto.
IHU On-Line – Qual é o modelo de educação seguido pelos guarani? É uma educação da palavra e pela palavra?
Bartomeu Melià – Efetivamente. Para o guarani, a Palavra é tudo, tudo para ele é palavra. E a palavra nunca é a de um só. Portanto, é uma educação comunitária e ao serviço da comunidade, embora haja também uma palavra própria, poética, que chega pela inspiração, mas é colocada ao serviço de todos, especialmente nas celebrações rituais. Pelo que observei, o menino e a menina são socializados desde muito pequenos não só pelos pais e pelas mães, mas eles são postos em condições para que possam estar abertos às palavras que receberão por meio dos relatos que escutam no pátio da aldeia ou em sua casa, mas sobretudo por meio dos cantos rituais. Toda essa atividade é feita em um ambiente de tranquilidade e paz, sem gritos, nem golpes. Chama a atenção como os pais de crianças de dois, três ou quatros anos as fazem raciocinar com paciência quando fizeram algo incorreto. O ambiente é de grande liberdade. A história de um guarani é a história de suas palavras, palavras escutadas e palavras ditas, palavras inspiradas e palavras rezadas, palavras pronunciadas em uma assembleia e palavras apenas sussurradas na vida íntima.
A educação escolar formal obedece a outro sistema que costuma trazer resultados desastrosos, sobretudo quando o docente vem do mundo dos brancos. No Brasil, no entanto, são agora numerosos os professores indígenas, alguns com formação universitária. São conscientes das grandes possibilidades que a escritura e o uso dos meios de comunicação digital oferecem, e se tornaram especialistas em seu manejo – muito mais do que eu, com certeza –, mas também estão muitos preocupados com os efeitos contrários que esses meios podem trazer ao sistema guarani. Essa problemática foi discutida nesta semana no VIII Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas, na Universidade Federal da Grande Dourados (25-29 de maio de 2010).
IHU On-Line – Qual é o significado da busca da terra sem males para os índios guarani? De que maneira essa busca é vista como fator essencial para se entender o povo guarani e sua visão de mundo?
Bartomeu Melià – Curiosamente, o conceito de terra-sem-mal outorgou aos guarani um caráter de modernidade notável. Do conceito, apropriaram-se não só os antropólogos, mas também ecologistas, filósofos, sociólogos, historiadores, poetas e teólogos. A Missa da terra-sem-males , de Dom Pedro Casaldáliga  e Pedro Tierra, é em si um poema admirável e apaixonado. Do guarani, foi amplamente divulgada a imagem de quem busca, incansável e profeticamente, essa terra-sem-mal. Falar de guarani se tornou quase sinônimo da busca da terra-sem-mal. Desse modo, uma experiência indígena se tornou exemplar e paradigmática para se pensar e trabalhar uma realidade mais ampla e geral, como é o projeto – a utopia – de uma sociedade mais solidária e humana. Segundo os versos de Casaldáliga (1980):
Os pobres desta terra
queremos inventar
essa Terra-sem-males
que vem cada manhã
E é verdade que as palavras “yvy marane’ÿ” – terra sem-mal – assim como “ka’a marane’ÿ” – selva ou monte sem-mal – constam já no “Tesoro”, de 1639, mas com um sentido mais ecológico e realista. Trata-se de um solo intacto, de um monte ou selva não trabalhado, de onde ainda não se tirou madeira. Por analogia, “kuña marane’ÿ” é mulher virgem, e o epíteto foi aplicado pelos missionários à Virgem Maria. O caminho à terra-sem-mal não desviaria do paraíso, mas, pelo contrário, faria começar aqui e agora essa utopia, em um caminhar esforçado e livre, sem alienação e sem opressão. A terra-sem-mal dos guarani seria, nada mais e nada menos, “a terra da liberdade de todos os homens”, como entendeu também Casaldáliga.
IHU On-Line - Essa interpretação concorda com a realidade etnográfica e o processo histórico dos guarani?
Bartomeu Melià - Em princípio, sim. Mas é preciso esclarecer que nem todos os guarani falam da terra-sem-mal. Aos Mbyá, parece ser uma novidade inventada por antropólogos e renegam o conceito, embora tenham outras palavras que seriam equivalentes.
A verdade é que os guarani escolheram climas úmidos, com uma temperatura média entre 18 e 22º C, se localizaram preferencialmente nas orlas de rios e lagunas, em lugares que não excedem os 400 metros acima do nível do mar, habitando bosques e selvas típicas da região subtropical.
Mas a ecologia guarani não é só natureza, nem se define pelo seu valor exclusivamente produtivo. Com uma expressão que lhe é muito característica, o guarani se refere ao seu território como “tekoha”. Pois bem, se o “teko” é o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o “tekoha” é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani. Com os próprios dirigentes guarani, é preciso dizer que sem “tekoha” não há “teko”. O “tekoha” ideal é um monte preservado e pouco perturbado, reservado para a caça, a pesca e a coleta de mel e frutas silvestres. Além disso, há manchas de terra especialmente férteis para nelas se fazer as roças e os cultivos. E, por fim, um lugar onde será levantada a grande casa comunal, com um grande pátio aberto, ao redor do qual crescem alguns pés de banana, de tartago, de algodão e de urucu. São esses espaços: monte, roça e aldeia, que dão a medida da boa terra guarani.
Há até muito pouco tempo – antes que chegasse a rápida deterioração ecológica da região –, caminhar pelos caminhos de um “tekoha” guarani e descansar em suas casas era ver um espetáculo e escutar uma sinfonia. Essa é a terra boa que o guarani, caminhante, horticultor e aldeão, procurou incansavelmente para nela cultivar e viver.
Com boa produção agrícola, pode-se ter muita e abundante comida, e a possibilidade de fazer festa é muito maior. O fundamento da terra guarani acaba sendo, desse modo, a festa, onde se compartilha a alegre bebida da chicha – “kaw” –, e onde há uma festa guarani aí está, no fim das contas, o centro da terra e a terra boa e perfeita à qual se aspira.
Para o guarani, há uma relação direta entre terra-sem-mal e perfeição da pessoa. O caminho de uma leva à outra. E assim como a terra-sem-mal é real e está neste mundo, a perfeição, que, em seu grau de excelência, inclui o não-morrer – que não é simplesmente a imortalidade –, também é real na terra. A terra-sem-mal como terra nova e terra de festa, espaço de reciprocidade e de amor mútuo, produz também pessoas perfeitas, que não saberiam morrer.
Historicamente, o guarani tem uma experiência inegável do mal na terra: é a festa impossível, a perfeição inalcançável. São numerosas as tradições que falam de catástrofes e cataclismos que já aconteceram e são sempre possíveis. As diversas metáforas da destruição da terra e de seus males podem receber uma leitura natural e desmitificada: se trataria de prolongadas secas, esgotamento do solo, diversas pragas de animais daninhos, eclipses do sol e da lua, inundações, ataques de inimigos... Não é essa, no entanto, a interpretação indígena. O mal na terra, essa “coisa deforme”, nunca é um fenômeno natural nem uma circunstância meramente ecológica. É algo que afeta e destrói o modo de ser guarani.
Os Paÿ e Kaiowá contemporâneos assinalam como causas que podem provocar a destruição da terra a violência e, em especial, o homicídio, as faltas cometidas contra a ordem moral, quando são negados a colaboração e o amor mútuo, e também a ofensa moral, quando não há reconciliação.
O mal atual consiste nos montes, nas cercas das fazendas que cortam os caminhos e reduzem a nada as terras indígenas, no egoísmo dos brancos e na falta de religião destes mesmos. É por isso que os cataclismos de sempre estão à espreita para se abater sobre o mundo: ventos de furacão, tempestades, incêndios, inundações, desgraças de todo o tipo, em forma de mortes repentinas, enfermidades incuráveis, fomes e mal-estar social.
O mal da terra não é de agora. Não há dúvida de que foi com a entrada do sistema colonial que o mal irrompeu com força inusitada e formas inéditas. Pestes, escravidão, cativeiro e perseguições foram os quatro cavaleiros do apocalipse colonial. A história colonial é, para o guarani, uma progressão de males que parece não ter fim nem limite. O pior de todos os males coloniais será simplesmente negar a terra aos guarani. Ir aonde? Desaparecem as selvas e os montes, tudo se torna campo, e o campo é exigido pelo branco para as suas vacas. Toda a terra se torna mal. O “mba’e meguã” – a coisa ruim – cobre tudo.
Migrante e, portanto, frequentemente “trans-terrado”, o guarani, nunca antes havia sido tão des-terrado. Agora, em busca da terra-sem-mal, ele só teme o dia em que só haverá mal sem terra. Então, não haverá nem terra nem palavra.
Estive com frequência em assembleias e em rituais em que os discursos e as rezas expressam a dramática busca do povo guarani, em vista à recuperação da terra-sem-mal. Certamente, se apresentam dificuldades enormes, principalmente para reconstituir um território guarani, que, por outro lado, seria de grande valor para o Brasil inteiro e para toda a região do Rio da Prata. Os guarani continuam lutando nessa busca. Isso lhes dá um sentido de ser, eles mesmos, profecias vivas e de ser, para todos nós, memória de futuro.